Por Marina Silva: As ruas, sempre as ruas.


Vladimir Chaves

Todos estão atentos às manifestações de rua marcadas para este domingo, que darão a medida do descontentamento político do país. Alguns analistas preveem manifestações menores que as do mês passado. A questão não é o número de pessoas. Menos gente nas ruas não significa menor insatisfação; ao contrário, pode até significar um aumento da desesperança, o represamento de uma revolta que pode retornar mais forte depois de algum tempo.

O sistema político se move descolado da sociedade, muitas vezes contra ela, mas não ao ponto de descuidar de sua própria sobrevivência e, por isso mesmo, está bem atento ao que ela antecipa. Agora mais ainda, pois ela antecipa, cada vez mais explicitamente, uma negação do sistema, de seus meios e de seus fins.

Se a sociedade explicita seu desejo, o poder está ainda mais nu. E já não consegue ocultar-se na pele ovina da defesa do interesse público. As medidas contra a crise já nem tem aparência de soluções, tem o claro objetivo de manter, ampliar ou conquistar o objeto de desejo dos que se movem na crise e pescam em suas águas turvas: o poder. Juros altos, inflação escapando a metas e previsões, endividamento das famílias, demissões, descontrole fiscal, corrupção sistêmica e endêmica. Pode haver dúvidas se esses são os elementos da crise ou o receituário para sair dela, mas basta olhar o ambiente político para ver que tudo serve à manipulação, que o objetivo não é sair da crise, mas usá-la.

Mas nem só de poder vivem os homens. E as perdas na vida das pessoas, a fragilização da democracia e a descrença no funcionamento das instituições são realidades que acabam se impondo e tornando a mudança política uma necessidade. O próprio túnel da crise produz uma luz ao seu final.

Assim, torna-se possível vislumbrar o desenvolvimento e a prosperidade, mas num novo modelo institucional. E atualizam-se, com mais dramaticidade, velhos dilemas não resolvidos na história do país. Em duas eleições seguidas – e nos quatro anos entre elas – sustentei com insistência a ideia do “Estado mobilizador” como alternativa à reducionista polarização entre Estado fiscalizador e Estado provedor, que alinhava em campos opostos neoliberais e desenvolvimentistas – ou quaisquer rótulos com que se tenham acusado mutuamente. Procurava, deste modo, indicar a superação da velha polêmica sobre o tamanho do Estado e colocava o foco no seu relacionamento com as forças sociais e econômicas, que devem ser mobilizadas na construção de um novo modelo de desenvolvimento, sustentável, e de uma gestão pública democrática que aproveitasse as possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias de comunicação.

Mas para buscar ou aceitar ideias alternativas é fundamental desfazer-se da ilusão de autosuficiência e de possuir, sozinho, a medida certa e a resposta para a enormidade da crise. E reconhecer erros ou limites nunca foi virtude dos governos anteriores, menos ainda do atual, que em qualquer ação – até nas mais rotineiras e prosaicas – procura sempre localizar inimigos, “eles”, e atribuir-lhes a culpa pelos males do Brasil.

Esse comportamento economiza a lógica. Torna dispensável explicar, por exemplo, como se pode discursar ao lado da ministra de Direitos Humanos pela manhã e demiti-la à tarde. Lançar uma campanha para combater as ofensas e mentiras na internet, sem mencionar que a “guerrilha virtual” – montada na campanha eleitoral e mantida com recursos públicos – é um dos piores exemplos do mal que se deseja combater. Falar em combate à corrupção, orgulhar-se de “deixar” a polícia investigar, sem explicar como é possível dirigir uma empresa por 12 anos levando-a do alto da montanha ao fundo do abismo sem suspeitar que ela estava sendo saqueada.

É na falta de lógica que se assenta o sistema contraditório em que o governo opera. Depois de fazer, nas eleições, a apologia de todo e qualquer tipo de aliança para poder ter maioria no Congresso, e após ter distribuído 39 pedaços do Estado entre os dez partidos da base dita aliada, o único cacife que tem é o de não ter cacife para nada. Sustenta-se porque não tem força para cair.

O governo não está em crise, ele é a crise. Isolado pelos aliados, sabotado por seus próprios integrantes, solapado até pelos que lhe deram origem, o governo dá respostas atabalhoadas aos problemas, a maioria criados por ele mesmo.

Mas ainda há tempo. O país ainda não afundou em uma crise constitucional e, sejamos justos, essa precária estabilidade deve-se em grande parte ao comportamento comedido e responsável de boa parte da oposição que, embora apoiando e considerando legítima a revolta da sociedade, não se lança na articulação de pretensas saídas que possam gerar o risco de fragilização do processo democrático. Reconheço e quero destacar entre todos o exemplo de lucidez e responsabilidade republicana do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que, sem abdicar de suas críticas ao governo, tem contribuído para analisar a crise política do país de um ponto de vista mais amplo, alertando para a necessidade de preservar o estado de direito conquistado com o fim da ditadura.

O próprio governo, forçado pelas circunstâncias, acaba aderindo, em alguns setores, a uma agenda republicana que não fazia parte de suas intenções iniciais. Em apenas três meses, mudou cinco ministros e, acertadamente, colocou na pasta da Educação um respeitado acadêmico que tinha e mantém posições críticas e relativa independência política. Assim como o ministro Joaquim Levy na Fazenda, o professor Renato Janine na Educação tem a responsabilidade de dar o exemplo ao restante do governo de como se pode “tocar o barco” ouvindo não apenas as ordens dos comandantes da política, mas também a do imenso número de passageiros e tripulantes e, principalmente, seguindo as leis do mar e as condições reais de navegação.

É pouco, muito pouco, diante de uma crise que anuncia agravamento contínuo e de uma insatisfação tão grande, que saiu às ruas há um mês. Neste domingo, a questão será colocada novamente – e ninguém se engane quanto à força que ela tem, demonstrada ou não.

O protesto fornece à presidente da República mais uma oportunidade de responder diretamente, sem terceirizar sua relação com a sociedade. Terá força e disposição para fazer isso? Espero que sim. Melhor a fragilidade dos pés de carne e osso das ruas, do que a aparente firmeza do pé-de-barro do marketing.
Com ou sem resposta, as pessoas marcham. E sabem que é melhor marchar, umas ao lado das outras, nas ruas da desaprovação. É melhor andarem juntos, os indignados com a institucionalização da corrupção. É melhor unir-se na desconfiança, abandonando falsas tábuas de salvação oferecidas por quem só sabe repetir-se – e a repetição não produz esperança. Marchar é um alento e os ativistas das ruas, autores de seu próprio movimento, como em todos os tempos no mundo inteiro, só tem a si mesmos, mas sabem que trazem a possibilidade de algum futuro.

As ruas, sempre as ruas, fazem lembrar as palavras de Martin Luther King em seu célebre discurso:

“Permitam-me dizer que, se vocês estão cansados de protestos, eu estou cansado de protestar (…). Mas o importante não é quanto eu estou cansado; a coisa mais importante é nos livrarmos da condiç
ão que nos leva a marchar. Senhores, vocês sabem que não temos muita coisa. Não temos dinheiro suficiente. Realmente não temos muito estudo e não temos poder político. Temos apenas nossos corpos, e vocês estão pedindo que abdiquemos da única coisa que possuímos quando dizem: ‘Não marchem’.”

Marina Silva


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