A Operação Carne Fraca,
deflagrada pela Polícia Federal no último dia 17, revelou um esquema de
propinas e favores recebidos por fiscais do Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento (MAPA) para emitir certificados sanitários sem a devida fiscalização,
mas também a espontaneidade com a qual tratava-se do “reaproveitamento” de
carnes estragadas, vencidas ou com bactérias. "Chega a causar náuseas a
naturalidade", comenta o relator judiciário da 14ª Vara Federal de
Curitiba, com a qual tratam sobre a destinação que planejavam dar "à carne
podre, com salmonela e altamente imprópria para o consumo".
Em um dos trechos do
despacho emitido pela Justiça Federal, baseado nas investigações da PF, é
notável a preocupação de dois funcionários do Ministério da Agricultura para
dar saída a um lote de 18 toneladas de peru, que foi devolvido da Itália com
salmonela, uma bactéria que causa infecções gastrointestinais. Em uma conversa
interceptada em abril de 2016, Carlos Cesar, um fiscal de inspeção sanitária do
Ministério no Paraná, e Carlos Augusto Goetzke (Carlão), um auxiliar
operacional em agropecuária, devaneiam sobre o que fazer com a carga.
Carlão: Eu sei que [a
carne] veio da Europa. Veio não sei se 17 ou 18 toneladas de peru é... com
salmonela, sabe? E ai vão levar lá no [frigorífico] Ramos pra fazer, nós temos
que liberar lá, ver tudo, né?
Carlos Cesar: hum
Carlão: liberar, eu não
sei o que fazer com isso, não sei se dá cozimento, eu nunca vi disso
Carlos Cesar: Dá para
fazer mortadela.
Carlão: Eu pegava essa
bosta aí, isso aí é peixada. Eu pegava, é, veio com problema, mete no digestor
[equipamento usado para a fabricação de farinha de carnes e ossos]
Carlos César: É.
Carlão: Pronto para fazer
ração, entendeu?
Carlos César: Exame,
análise, tudo certinho, para amanhã ou depois não ter que prestar contas disso
aí.
Os dois colegas continuam
conversando sobre como dar saída ao lote de carne contaminada sem que o produto
seja analisado e Carlão insiste na ideia do digestor. “Cada vez que dava um
probleminha de qualquer troço no animal, é digestor [...] Alguém teve, lá em
cima teve uma peixada, e liberaram essa porcaria aí. Eu nunca vi disso”, afirma
o auxiliar, ao que o fiscal Carlos Cesar responde: “Reaproveitamento”. Dois
dias depois, após a negativa do frigorífico Ramos a comprar a carne “para não
dar problema”, os funcionários dão por resolvido o “probleminha” ao afirmar que
a carga seria vendida “para outros lados”.
A salmonela salpica várias
páginas dos argumentos do juiz que o levaram a determinar 38 mandados de
prisão. Em uma outra conversa interceptada pelos investigadores, Maria Estela,
da qual não fica clara sua função, mas que parece funcionária da Brasil Foods -
BRF (dona da Sadia e Perdigão), explica para Roney Nogueira, gerente de
Relações Institucionais e Governamentais da empresa, qual poderia ser a fórmula
para a empresa burlar um controle mais estrito de salmonela nas unidades da
companhia.
Maria Estela explica a
Roney que acabou de ser aprovado um “procedimento mais rígido” para o controle
da bactéria. Agora as granjas registradas passam por análise no próprio
laboratório da empresa enquanto as não registradas são obrigadas a controles
mais estritos e as amostras devem ser enviadas a laboratórios oficiais do
Ministério da Agricultura. A BRF tem 74 granjas de frango e 75 de peru que não
possuem esse registro, alerta Maria Estela.
Maria Estela: Qual é o
nosso problema aí? A gente tem incidência de salmonela
Roney: E qual a
dificuldade da companhia registrar no Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA)?
Maria Estela: Antes a
dificuldade era de conseguir documento e tal. Mas com esse Memorando Circular
[a nova norma] aqui, a unidade deu um corre em todo mundo e quer regularizar
100% dessas granjas com registro. Fazer com que todas tenham registro porque aí
vamos correr menos risco de uma análise em laboratório oficial.
O objetivo da conversa é
pedir para Roney, amplamente citado na investigação, preso preventivamente e
uma das peças chave do esquema de corrupção de servidores públicos, que ative
seus contatos para agilizar o processo de registro de todas as granjas,
especialmente em Minas Gerais, pois o risco de passar por análises externos “é
muito grande”.
Roney: Entendi. O prazo é
pra ontem, então.
Maria Estela: E cada
análise que a gente faz é um risco que a gente tá correndo de dar um resultado
que o lote inteiro não vai ser recebido.
Carne estragada na
produção
Fora a salmonela, há
outras referências a carnes em mau estado de diferentes produtoras ao longo do
despacho de 353 páginas do juiz. A investigação cita aproveitamento de animais
mortos para produção de gêneros alimentícios, a utilização de carnes estragadas
na composição de salsichas e linguiças, e a maquiagem de carnes estragadas com
ácido sórbico, antioxidante permitido na indústria em quantidades restritas,
mas proibido para disfarçar o mau estado dos alimentos, conforme informou a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Um exemplo concreto é o de
Paulo Sposito, dono do frigorífico Larissa do Paraná e candidato a deputado
estadual em São Paulo em 2010 pelo PPS. Ele é acusado pelo juiz de permitir
procedimentos fora das normas técnicas agropecuárias como o transporte de
produtos fora da temperatura adequada, a troca de etiquetas e a colocação no
mercado de itens vencidos, “sob a proteção e chancela” do ex-superintendente do
MAPA Daniel Gonçalves, suposto chefe do esquema corrupto no Paraná. O
magistrado destaca o seguinte diálogo sobre carne vencida entre Paulo, com
prisão preventiva decretada, e um funcionário.
Funcionário: Nós temos uma
carga de barriga, mas uma lá que tem que trocar a etiqueta. Cê lembra?
Paulo: Ah, mas e daí?
Troca, ué.
Funcionário: Sim, mas daí
eu tenho que trocar ela no final de semana né... que o rapazinho não tá aqui.
Porque ela tá vencida.
Paulo: Então...mas ela tá
onde?
Funcionário: Eu acho que
tá lá no armazém lá de baixo.
Em outro diálogo, o
funcionário e o dono do frigorífico conversam sobre outro lote vencido há três
meses.
Funcionário: Seu Paulo?
Paulo: Oi.
Funcionário: Achamos umas
paletas 127, que estão vencidas desde fevereiro. Manda embora ou deixa na
produção pra eles usar?
Paulo: Deixa na produção
pra eles usar (sic).
Outro dos diálogos
interceptados que versam sobre a qualidade dos produtos comercializados é entre
dois fiscais da Superintendência Federal de Agricultura no Estado do Paraná.
Tarcísio e Sérgio reclamam da má qualidade dos produtos que receberam como propina
da Peccin, frigorífico que eles mesmos fiscalizavam.
Tarcísio: Eu peguei um
peito defumado de frango. Decaiu muito o produto Peccin aí.
Sérgio: É tá muito
(ininteligível). A Sueli [a mulher] falou a mesma coisa: "Meu Deus, Sergio
o que é que é isso, cara?"
Tarcísio: Não se pode
criticar, eu sei. Mas eu, com toda sinceridade, eu não comi, Sérgio. Eu dei um
pedaço aqui para o vizinho, eu dei outro para minha cunhada. Eu quando fui
cortar, Sérgio, não é aquele peito defumado que tenha carne gostoso. É tipo uma
massa, tipo mortadela. Uma massa homogênea.
Sérgio: É, o último foi
bem desagradável.
Ambos, Tarcísio Almeida e
Sérgio Pianaro, tiveram a prisão preventiva decretada, após os investigadores
grampearem seus telefones e acharem indício de crimes de corrupção. São vários
os diálogos da dupla sobre o recebimento de propinas, e inclusive há uma
conversa na qual Tarcísio, que costuma reclamar de quase tudo embora tenta ser
discreto no celular, fica indignado porque o valor recebido pela empresa que
fiscalizam diminuiu esse mês sem ele ter sido alertado. Segundo uma das
testemunhas que colaborou na investigação, ex-funcionária da Peccin, Tarcísio,
além de asinhas de frango, peito de peru e coxinhas, recebia valores de 2.000 a
5.000 reais para certificar que tudo funcionava na empresa normalmente, sem
sequer fiscalizar.
El País