“Dom Ciccillo” e o fim do mundo


Vladimir Chaves


“Dom Ciccillo” e o fim do mundo

Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O avesso da lenda (Artes e Ofícios), A vida que ninguém vê (Arquipélago, Prêmio Jabuti 2007) e O olho da rua - uma repórter em busca da literatura da vida real (Globo).

Quando o sol nasceu com a indiferença de sempre em 22 de dezembro, perguntei a um insistente apocalíptico das minhas relações como ele explicava que o mundo não havia acabado, tal qual ele havia repetido durante o ano inteiro como um mantra. Ele me desferiu um olhar de pena e respondeu, altivo: “E você achou que o mundo acabaria em fogo e fumaça”?

Achei a resposta um tanto 171, mas os primeiros meses deste ano começam a me assombrar. E se ele tinha razão, o mundo acabou, e eu agora me encontro numa espécie de realidade paralela? O primeiro sinal apareceu dias depois do apocalipse que parecia não ter acontecido, quando José Sarney (PMDB) defendeu, numa entrevista publicada na Folha de S. Paulo de 31 de dezembro, que ex-presidente deveria ser proibido de disputar eleição. “Acho que deveríamos ter uma legislação que não permitisse a nenhum ex-presidente da República, deixando o governo, que voltasse a qualquer cargo eletivo”, afirmou o homem que chegou à Câmara dos Deputados em 1955. Depois de deixar a presidência da República, em 1990, foram três mandatos como senador e mais de duas décadas ininterruptas no Congresso. Agora, em vias de aposentamento, defendia que para os outros deveria ser proibido. Estranho, muito estranho, desconfiei. O ano virou, e a realidade continuou ainda mais fantástica do que o habitual. Fantástica demais para ser confiável.

Uma série de acontecimentos tem me feito duvidar da realidade. E, na quarta-feira da semana passada, 13 de março, simplesmente parei de acreditar. Nesta data, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei 6167, de 2009, batizando de “Rodovia Cecílio do Rego Almeida” o trecho da BR-277 localizado entre as cidades de Paranaguá e Curitiba, um dos principais da região sul do país. Ao ler a notícia, puxei da memória: “Cecílio do Rego Almeida, conhecido desde a ditadura militar como ‘Dom Ciccillo’? Aquele que foi chamado pela imprensa de ‘o maior grileiro do mundo’”? Não, claro que não.

Procurei o nome do autor do projeto: deputado André Vargas, atual vice-presidente da Câmara. Não, tive certeza que não. Como um deputado do PT, partido apoiado por boa parte dos movimentos sociais da Amazônia (hoje com bem menos afinco que na década passada), faria uma homenagem póstuma ao homem acusado de grilar uma área quase equivalente à soma dos territórios da Bélgica e da Holanda, na Terra do Meio, no Pará? Um reconhecimento público ao homem que se apossou de terras públicas, terras indígenas e até de assentamentos do Incra? Impossível, eu já concluía, quando vi no Twitter uma manifestação do deputado José Mentor, também do PT, anunciando, aparentemente com orgulho, que havia sido o relator do projeto, aprovado nessa última comissão.

Senti aquela vertigem cada vez mais familiar, sem saber se acreditava na lógica, que me dizia ser impossível, ou no que tentam me fazer acreditar que é a realidade. Entrei no site da Câmara e lá estava o projeto, aprovado em três comissões (a de Educação, a de Viação e Transportes e a CCJC). Fui conferir a justificativa do autor, deputado André Vargas: “A denominação que se pretende conferir ao trecho citado é uma justa homenagem ao Sr. Cecílio do Rego Almeida, empresário fundador e presidente do Conselho de Administração do Grupo CR Almeida, que reúne mais de 30 empresas e atua nas áreas de construção pesada, concessão de rodovias e logística de transporte, química e explosivos”. E, ao final: “Seu trabalho foi perseverante em seu objetivo, e agora, após a sua morte (...), este benemérito cidadão poderá receber a merecida homenagem”.

Me parecia evidente que eu estava sofrendo de alucinações. “Dom Ciccillo” seria homenageado por sua “perseverança”? Qual “perseverança”? Com certeza não a de se se apropriar de cerca de 6 milhões de hectares de floresta amazônica, num reino apelidado como “Ceciliolândia”. Merecida homenagem a “Dom Ciccillo”? O mesmo homem que, numa entrevista à revista Caros Amigos, chamou Marina Silva, então ministra do Meio Ambiente, de “uma indiazinha totalmente analfabeta e doente”?

Assim como definiu o ex-governador do Rio Grande do Sul Olívio Dutra como “um bicha, que é veado”? E se referiu a Chico Mendes como “esse seringueiro que se fodeu”? (Os leitores me perdoem a deselegância, mas as frases são do homenageado e, portanto, se justificam no contexto.) Na mesma entrevista, de 2005, “Dom Ciccillo” assim se refere à ditadura militar, que muitas grandes obras concedeu à sua empreiteira – e também ao partido do autor do projeto de lei, que agora faz a ele uma homenagem póstuma: “Entendo que foi uma ditadura, mas a mais leve das ditaduras. Hoje existe uma ditadura no PT mais forte que a dos militares”.
Não é óbvio, evidente, claríssimo que o projeto de lei não é real? Eu estou com a página da Câmara aberta diante de mim, mas só pode ser uma conspiração. A página verdadeira deve ter sido substituída por esta, falsa. Não acreditei nem por um minuto. “Dom Ciccillo”, homenageado pelos serviços prestados ao Brasil? Fiquei imaginando a cara de Raimundo Belmiro e muitos outros da Terra do Meio, que testemunharam a atuação de “Dom Ciccillo” na Amazônia, ao tomar conhecimento de que essa piada circulava no país como coisa séria. Quem seria o néscio que acreditaria numa coisa dessas? Eu é que não. E acreditei ainda menos quando li na Gazeta do Povo, do Paraná, que, por coincidência, a rodovia batizada com o nome de “Dom Ciccillo” é a mesma em que uma das empresas da CR Almeida administra o pedágio. Não, é claro que isso não está acontecendo.  

Já não tinha acreditado no que me garantiam ser a realidade quando o Incra destinou um lote de terra à mulher do homem que será julgado pelo assassinato de José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo. Para quem não lembra, os dois líderes extrativistas foram mortos numa tocaia, em maio de 2011, em Nova Ipixuna, no Pará. Tiveram pulmões e corações perfurados, e uma orelha de José Cláudio foi arrancada para comprovar a execução. O julgamento de José Rodrigues Moreira, acusado como mandante, e dos dois supostos executores do crime está marcado para 3 de abril. Mas no início de março foi divulgado que o Incra havia concedido um lote de terra à mulher de Moreira, a mesma área da qual ele tentou expulsar três famílias e só não conseguiu por causa da resistência de José Cláudio e Maria. Em resumo: o homem acusado de ordenar um duplo homicídio ganhou do Estado a concessão da terra que motivou o conflito. Uma espécie de prêmio. 

Alguém acredita que o Incra cometeria uma barbaridade dessas? Eu nunca acreditei. E, como já não acreditava, também não levei a sério quando o Incra afirmou ao Ministério Público Federal que a concessão do lote foi um “equívoco” – e que a área seria retomada pela via jurídica. 

Minha resistência em acreditar numa realidade que parece ficção de quinta categoria já havia sido testada antes, quando o deputado Marco Feliciano (PSC), pastor evangélico de sua própria igreja, a “Catedral do Avivamento”, se tornou presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. Marco Feliciano? Eu só conhecia um. Este, entre outros barbarismos, havia afirmado o seguinte: “Os africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé”. E ainda diria: “O reto não foi feito para ser penetrado”. Logo, não poderia ser este Marco Feliciano o presidente de uma comissão destinada a zelar pelos direitos de, entre outras minorias, negros e homossexuais. Portanto, é óbvio que eu não podia acreditar. E não acreditei. 
Se fosse do tipo crédulo, como tantos por aí, eu acreditaria não só que o deputado Marco Feliciano é presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, mas também que o senador Blairo Maggi (PR), ruralista que chegou a ganhar o “Motosserra de Ouro”, troféu do Greenpeace destinado a quem mais colabora com a devastação, é o presidente da Comissão de Meio Ambiente do Senado. Teria de acreditar inclusive que o deputado João Magalhães (PMDB), que responde a três inquéritos no STF (peculato, tráfico de influência e crime contra o sistema financeiro), é o presidente da Comissão de Finanças e Tributação da Câmara. E teria de acreditar até mesmo que Renan Calheiros (PMDB), que em 2007 renunciou à presidência do Senado por suspeita de corrupção, é hoje de novo o presidente do Senado. 

Quem acredita nisso? Eu não.

terça-feira, 19 de março de 2013

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OPINIÃO: ROYALTIES PARA A EDUCAÇÃO?


Vladimir Chaves


Na madrugada de 7 de março de 2013, o congresso derrubou o veto da presidente Dilma Rousseff sobre a distribuição dos royalties. Com isso, o Congresso aprovou uma lei que (re)distribui os royalties do petróleo sem o debate de maior importância sobre a questão: qual o melhor uso desses recursos? Ou seja, o Congresso decidiu como os recursos serão divididos entre os estados, mas não como esses recursos serão utilizados. Nesse sentido, a proposta da presidente de alocar os royalties para a Educação merece ser destacada como um importante primeiro passo nessa discussão. Mas, será essa a melhor utilização desses recursos?

A escolha de onde utilizar esses fundos deve considerar alguns aspectos peculiares das receitas oriundas dos royalties do petróleo. Esses recursos, apesar de grandes, são temporários: as reservas provadas de petróleo são de no máximo 50 anos. Os custos de extração e o preço do petróleo (só para mencionar dois fatores importantes na atividade) sofrem variações frequentes, que tornam incertas as receitas que os governos vão auferir por essa via. O ideal seria substituir um recurso não renovável, como petróleo, por outro renovável, o capital.

O aspecto temporário e a incerteza sobre as receitas futuras recomendam que se tomem cuidados no financiamento dos gastos correntes com os recursos do petróleo. Esses devem ficar limitados ao que se chama de renda permanente: a quantidade de recursos que o governo poderia gastar por ano de forma indefinida. Essa é dada pelo fluxo de renda obtido como retorno da aplicação dos recursos oriundos da venda imediata de todas as reservas de petróleo do país. Uma despesa corrente superior à renda permanente do petróleo pode ficar descoberto quando a receita corrente declinar.

A alocação de recursos de petróleo para a Educação (ou saúde) tem uma intenção nobre, mas sua efetividade é duvidosa. Assim, ela serve simultaneamente ao propósito de sinalizar a importância dada pelo governo à Educação no Brasil, como para viabilizar a determinação do Congresso de se gastar 10% do PIB com Educação.

Mas tanto o governo como o Congresso partem do pressuposto de que aumentar o gasto com Educação vai melhorar a qualidade dela. Infelizmente, o pressuposto é equivocado. A literatura internacional mostra que não existe relação direta entre gasto por Aluno e o seu desempenho/aprendizado Escolar. No Brasil, vemos que estados com gastos mais elevados por Aluno não apresentam resultados melhores, avaliados pelo IDEB, do que os estados que gastam menos.

Dessa forma, o simples aumento de recursos não terá o efeito esperado e será desperdiçado em um sistema com gestão duvidosa em que ainda existe a isonomia salarial, e o principal instrumento de progressão na carreira é o tempo de serviço. Ou seja, nenhum mecanismo relacionado ao desempenho. No cenário, dar mais recursos pode resultar em um custo mais alto, sem a melhoria da qualidade de Ensino esperada pela população e pelos políticos.
Infelizmente, o processo político e a busca individual de cada estado para aumentar as próprias receitas dominaam o debate acerca da distribuição dos royalties. Com isso, não se teve uma discussão bem informada e protegida dos lobbies sobre a melhor utilização dos recursos do petróleo. Os royalties devem ser direcionados para áreas onde possam fazer a diferença. Destinos nobres como saúde e Educação necessitam de uma melhora de gestão para que estes recursos tenham o impacto esperado pela população. Além disso, deveríamos pensar em outros destinos nobres como, por exemplo, reduzir o deficit habitacional, ampliar a oferta de saneamento básico e melhorar a infraestrutura no país.

A aprovação da nova regra de distribuição dos royalties não considerou os aspectos acima. A nova lei fará com que o país desperdice mais uma chance de avançar com rapidez rumo ao desenvolvimento. Já que apenas se definiu para quem os recursos seriam destinados e não a melhor forma de utilizá-los. 

Fonte: Correio Braziliense

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