A esta altura está claro
que a pandemia de covid-19 não é só uma questão de saúde: por seu alcance,
sempre foi social; pelos seus efeitos, já se tornou econômica; e por suas
consequências pode vir a ser de segurança. A crise que ela causou nunca foi,
nem poderia ser, questão afeta exclusivamente a um ministério, a um Poder, a um
nível de administração ou a uma classe profissional. É política na medida em
que afeta toda a sociedade e esta, enquanto politicamente organizada, só pode
enfrentá-la pela ação do Estado.
Para esse mal nenhum país
do mundo tem solução imediata, cada qual procura enfrentá-lo de acordo com a
sua realidade. Mas nenhum vem causando tanto mal a si mesmo como o Brasil. Um
estrago institucional que já vinha ocorrendo, mas agora atingiu as raias da
insensatez, está levando o País ao caos e pode ser resumido em quatro pontos.
O primeiro é a polarização
que tomou conta de nossa sociedade, outra praga destes dias que tem muitos
lados, pois se radicaliza por tudo, a começar pela opinião, que no Brasil corre
o risco de ser judicializada, sempre pelo mesmo viés. Tornamo-nos assim
incapazes do essencial para enfrentar qualquer problema: sentar à mesa,
conversar e debater. A imprensa, a grande instituição da opinião, precisa rever
seus procedimentos nesta calamidade que vivemos. Opiniões distintas, contrárias
e favoráveis ao governo, tanto sobre o isolamento como a retomada da economia,
enfim, sobre o enfrentamento da crise, devem ter o mesmo espaço nos principais
veículos de comunicação. Sem isso teremos descrédito e reação, deteriorando-se
o ambiente de convivência e tolerância que deve vigorar numa democracia.
O segundo ponto é a
degradação do conhecimento político por quem deveria usá-lo de maneira
responsável, governadores, magistrados e legisladores que esquecem que o Brasil
não é uma confederação, mas uma federação, a forma de organização política
criada pelos EUA em que o governo central não é um agente dos Estados que a
constituem, é parte de um sistema federal que se estende por toda a União.
Em O Federalista – a
famosa coletânea de artigos que ajudou a convencer quase todos os delegados da
convenção federal a assinarem a Constituição norte-americana em 17 de setembro
de 1787 –, John Jay, um de seus autores, mostrou como a “administração, os
conselhos políticos e as decisões judiciais do governo nacional serão mais
sensatos, sistemáticos e judiciosos do que os Estados isoladamente”,
simplesmente por que esse sistema permite somar esforços e concentrar os
talentos de forma a solucionar os problemas de forma mais eficaz.
O terceiro ponto é a
usurpação das prerrogativas do Poder Executivo. A esse respeito, no mesmo
Federalista outro de seus autores, James Madison, estabeleceu “como fundamentos
básicos que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário devem ser separados e
distintos, de tal modo que ninguém possa exercer os poderes de mais de um deles
ao mesmo tempo”, uma regra estilhaçada no Brasil de hoje pela profusão de
decisões de presidentes de outros Poderes, de juízes de todas as instâncias e de
procuradores, que, sem deterem mandatos de autoridade executiva, intentam
exercê-la.
Na obra brasileira que
pode ser considerada equivalente ao Federalista, Amaro Cavalcanti (Regime
Federativo e a República Brasileira, 1899), que foi ministro de Interior e
ministro do Supremo Tribunal Federal, afirmou, apenas dez anos depois da
Proclamação da República, que “muitos Estados da Federação, ou não
compreenderam bem o seu papel neste regime político, ou, então, têm procedido
sem bastante boa fé”, algo que vem custando caro ao País.
O quarto ponto é o
prejuízo à imagem do Brasil no exterior decorrente das manifestações de
personalidades que, tendo exercido funções de relevância em administrações
anteriores, por se sentirem desprestigiados ou simplesmente inconformados com o
governo democraticamente eleito em outubro de 2018, usam seu prestígio para
fazer apressadas ilações e apontar o País “como ameaça a si mesmo e aos demais
na destruição da Amazônia e no agravamento do aquecimento global”, uma acusação
leviana que, neste momento crítico, prejudica ainda mais o esforço do governo
para enfrentar o desafio que se coloca ao Brasil naquela imensa região, que
desconhecem e pela qual jamais fizeram algo de palpável.
Esses pontos resumem uma
situação grave, mas não insuperável, desde que haja um mínimo de sensibilidade
das mais altas autoridades do País.
Pela maneira desordenada
como foram decretadas as medidas de isolamento social, a economia do País está
paralisada, a ameaça de desorganização do sistema produtivo é real e as maiores
quedas nas exportações brasileiras de janeiro a abril deste ano foram as da
indústria de transformação, automobilística e aeronáutica, as que mais geram
riqueza. Sem falar na catástrofe do desemprego que está no horizonte.
Enquanto os países mais
importantes do mundo se organizam para enfrentar a pandemia em todas as
frentes, de saúde a produção e consumo, aqui, no Brasil, continuamos entregues
a estatísticas seletivas, discórdia, corrupção e oportunismo.
Há tempo para reverter o
desastre. Basta que se respeitem os limites e as responsabilidades das
autoridades legalmente constituídas.
Antônio Hamilton Martins
Mourão
VICE-PRESIDENTE DA
REPÚBLICA
(Publicado em OESP em 14
de maio de 2020)