Por Erick Vizolli
O que é isso?
O maior problema do estado
é que, tal qual um paciente de hospício, ele acredita possuir superpoderes,
podendo violar as regras da natureza como bem entender. Dois exemplos bem
conhecidos pelos liberais: ele considera ser capaz de ler mentes de milhares de
pessoas ao mesmo tempo com uma precisão incrível e ter uma superinteligência
capaz de fazer milhões de cálculos econômicos por segundo. Um roteirista de
história em quadrinhos não faria melhor.
O estado brasileiro, no
entanto, não está satisfeito com seus delírios atuais, e pretende aumentar o
espectro dos seus poderes sobrenaturais para dois campos que a Física considera
praticamente inalcançáveis. E parece estar conseguindo: desde 26/05/2014,
viagem no tempo e teletransporte passaram a ser oferecidos de graça a todo e
qualquer cidadão brasileiro.
Obviamente, a tecnologia
está nos seus primórdios e ainda tem suas limitações, de tal modo que você,
pretenso candidato a Marty McFly, pode escolher apenas um destino para suas
aventuras: a Rússia de abril de 1917. Em compensação, prepare-se: graças ao
estado brasileiro, você está prestes a enfrentar a experiência soviética em
todo o seu esplendor.
A “máquina do tempo” que
nos leva de volta a 1917 tem um nome no mínimo inusitado: chama-se “Decreto nº
8.243, de 23 de maio de 2014”. Aqui a denominaremos apenas de “Decreto 8.243”,
ou “Decreto”.
Este artigo se destina a
investigar o seu funcionamento – ou, mais especificamente, quais as
modificações que esse decreto introduz na administração pública. Também farei
algumas breves considerações a respeito da analogia que se pode fazer entre o
modelo por ele instituído e aquele que levou à instauração do socialismo na
Rússia: trata-se, no entanto, apenas de uma introdução ao tema, que, pela
importância que tem, com certeza ainda gerará discussões muito mais
aprofundadas.
O Decreto 8.243/2014
Chamado por um editorial
do Estadão de “um conjunto de barbaridades jurídicas” e por Reinaldo Azevedo de
“a instalação da ditadura petista por decreto”, o Decreto 8.243 foi editado
pela Presidência da república em 23/05/14, tendo sido publicado no Diário
Oficial no dia 26 e entrado em vigor na mesma data.
Entender qual o real
significado do Decreto exige ler pacientemente todo o seu texto, tarefa
relativamente ingrata. Como todo bom decreto governamental, trata-se de um
emaranhado de regras cuja formulação chega a ser medonha de tão vaga, sendo
complicado interpretá-lo sistematicamente e de uma forma coerente. Tentarei,
aqui, fazê-lo da forma mais didática possível, sempre considerando que grande
parte do público leitor dessa página não é especialista na área jurídica (a
propósito: que sorte a de vocês.).
Iniciemos do início, pois.
Como o nome diz, trata-se de um “decreto”. “Decreto”, no mundo jurídico, é o
nome que se dá a uma ordem emanada de uma autoridade – geralmente do Poder
Executivo – que tem por objetivo dar detalhes a respeito do cumprimento de uma
lei. Um decreto se limita a isso – detalhar uma lei já existente, ou, em
latinório jurídico, ser “secundum legem”. Ao elaborá-lo, a autoridade não pode
ir contra uma lei (“contra legem”) ou criar uma lei nova (“præter legem”). Se
isso ocorrer, o Poder Executivo estará legislando por conta própria, o que é o
exato conceito de “ditadura”. Ou seja: um decreto emitido em contrariedade a
uma lei já existente deve ser considerado um ato ditatorial.
É exatamente esse o caso
do Decreto 8.243. Logo no início, vemos que ele teria sido emitido com base no
“art. 84, caput, incisos IV e VI, alínea “a”, da Constituição, e tendo em vista
o disposto no art. 3º, caput, inciso I, e no art. 17 da Lei nº 10.683”.
Traduzindo para o português, tratam-se de alguns artigos relacionados à
organização da administração pública, dentre os quais o mais importante é o
art. 84, VI da Constituição – o qual estabelece que o Presidente pode emitir
decretos sobre a “organização e funcionamento da administração federal, quando
não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos”.
Guarde essa última frase.
Como veremos adiante, o que o Decreto 8.243 faz, na prática, é integrar à
Administração Pública vários órgãos novos – às vezes implícita, às vezes
explicitamente –, algo que é constitucionalmente vedado ao Presidente da
República. Portanto, logo de cara percebe-se que se trata de algo
inconstitucional – o Executivo está criando órgãos públicos mesmo sendo
proibido a fazer tal coisa.
Os absurdos jurídicos,
contudo, não param por aí.
A “sociedade civil”
Analisemos o texto do
Decreto, para entender quais exatamente as modificações que ele introduz no
sistema governamental brasileiro.
Em princípio, e para quem
não está acostumado com a linguagem de textos legais, a coisa toda parece de
uma inocência singular. Seu art. 1º esclarece tratar-se de uma nova política
pública, “a Política Nacional de Participação Social”, que possui “o objetivo
de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo
e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade
civil”. Ou seja: tratar-se-ia apenas de uma singela tentativa de aproximar a
“administração pública federal” – leia-se, o estado – da “sociedade civil”.
O problema começa
exatamente nesse ponto, ou seja, na expressão “sociedade civil”. Quando usado
em linguagem corrente, não se trata de um termo de definição unívoca: prova
disso é que sobre ele já se debruçaram inúmeros pensadores desde o século
XVIII. Tais variações não são o tema deste artigo, mas, para quem se
interessar, sugiro sobre o assunto a leitura deste texto de Roberto Campos,
ainda atualíssimo.
Para o Decreto, contudo,
“sociedade civil” tem um sentido bem determinado, exposto em seu art. 2º, I:
dá-se esse nome aos “cidadãos, coletivos, movimentos sociais
institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas
organizações”.
Muita atenção a esse
ponto, que é de extrema importância. O Decreto tem um conceito preciso daquilo
que é considerado como “sociedade civil”. Dela fazem parte não só o “cidadão” –
eu e você, como pessoas físicas – mas também “coletivos, movimentos sociais
institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas
organizações”. Ou seja: todos aqueles que promovem manifestações,
quebra-quebras, passeatas, protestos, e saem por aí reivindicando terra,
“direitos” trabalhistas, passe livre, saúde e educação – MST, MTST, MPL, CUT,
UNE, sindicatos… Pior: há uma brecha que permite a participação de movimentos
“não institucionalizados” – conceito que, na prática, pode abranger
absolutamente qualquer coisa.
Em resumo: “sociedade
civil”, para o Decreto, significa “movimentos sociais”. Aqueles mesmos que,
como todos sabemos, são controlados pelos partidos de esquerda – em especial,
pelo próprio PT. Não se enganem: a intenção do Decreto 8.243 é justamente abrir
espaço para a participação política de tais movimentos e “coletivos”. O
“cidadão” em nada é beneficiado – em primeiro lugar, porque já tem e sempre
teve direito de petição aos órgãos públicos (art. 5º, XXXIV, “a” da
Constituição); em segundo lugar, porque o Decreto não traz nenhuma disposição a
respeito da sua “participação popular” – aliás, a palavra “cidadão” nem é
citada no restante do texto, excetuando-se um princípio extremamente genérico
no art. 3º.
Podemos, então, reescrever
o texto do art. 1º usando a própria definição legal: o Decreto, na verdade, tem
“o objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias
democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública
federal e os movimentos sociais”.
Compreender o significado
de “sociedade civil” no contexto do Decreto é essencial para se interpretar o
resto do seu texto. Basta notar que a expressão é repetida 24 (vinte e quatro!)
vezes ao longo do restante do texto, que se destina a detalhar os instrumentos
a serem utilizados na tal “Política Nacional de Participação Social”.
“Mecanismos de
participação social”
Ok, então: há uma política
que visa a aproximar estado e “movimentos sociais”. Mas no que exatamente ela
consiste? Para responder a essa questão, comecemos pelo art. 5º, segundo o qual
“os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta
deverão, respeitadas as especificidades de cada caso, considerar as instâncias
e os mecanismos de participação social, previstos neste Decreto, para a formulação,
a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e políticas
públicas”.
Traduzindo o juridiquês: a
partir de agora, todos os “os órgãos e entidades da administração pública
federal direta e indireta” (ou seja, tudo o que se relaciona com o governo
federal: gabinete da Presidência, ministérios, universidades públicas…) deverão
formular seus programas em atenção ao que os tais “mecanismos de participação
social” demandarem. Na prática, o Decreto obriga órgãos da administração direta
e indireta a ter a participação desses “mecanismos”. Uma decisão de qualquer um
deles só se torna legítima quando houver essa consulta – do contrário, será
juridicamente inválida. E, como informam os parágrafos do art. 5º, essa
participação deverá ser constantemente controlada, a partir de “relatórios” e
“avaliações”.
Os “mecanismos de
participação social” são apresentados no art. 2º e no art. 6º, que fornecem uma
lista com nove exemplos: conselhos e comissões de políticas públicas,
conferências nacionais, ouvidorias federais, mesas de diálogo, fóruns
interconselhos, audiências e consultas públicas e “ambientes virtuais de
participação social” (pelo visto, nossos amigos da MAV-PT acabam de ganhar mais
uma função…).
A rigor, todas essas
figuras não representam nada de novo, pois já existem no direito brasileiro.
Para ficar em alguns exemplos: “audiências públicas” são realizadas a todo
momento, a expressão “conferência nacional” retorna 2.500.000 hits no Google e
há vários exemplos já operantes de “conselhos de políticas públicas”, como
informa este breve relatório da Câmara dos Deputados sobre o tema. Qual seria o
problema, então?
A questão está, novamente,
nos detalhes. Grande parte do restante do Decreto – mais especificamente, os
arts. 10 a 18 – destinam-se a dar diretrizes, até hoje inexistentes (ao menos
de uma forma sistemática), a respeito do funcionamento desses órgãos de
participação. E nessas diretrizes mora o grande problema. Uma rápida leitura
dos artigos que acabei de mencionar revela que várias delas estão impregnadas
de mecanismos que, na prática, têm o objetivo de inserir os “movimentos
sociais” a que me referi acima na máquina administrativa brasileira.
Vamos dar um exemplo,
analisando o art. 10, que disciplina os “conselhos de políticas públicas”. Em
seus incisos, estão presentes várias disposições que condicionam sua atividade
à da “sociedade civil” – leia-se, aos “movimentos sociais”, como demonstrado
acima. Por exemplo: o inciso I determina que os representantes de tais
conselhos devem ser “eleitos ou indicados pela sociedade civil”, o inciso II, que
suas atribuições serão definidas “com consulta prévia à sociedade civil”. E
assim por diante. Essas brechas estão espalhadas ao longo do texto do Decreto,
e, na prática, permitem que “coletivos, movimentos sociais institucionalizados
ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações” imiscuam-se na
própria Administração Pública.
O art. 19, por sua vez,
cria um órgão administrativo novo (lembram do que falei sobre a
inconstitucionalidade, lá em cima?): “a Mesa de Monitoramento das Demandas
Sociais, instância colegiada interministerial responsável pela coordenação e
encaminhamento de pautas dos movimentos sociais e pelo monitoramento de suas
respostas”. Ou seja: uma bancada pública feita sob medida para atender “pautas
dos movimentos sociais”, feito balcão de padaria. Para quem duvidava das reais
intenções do Decreto, está aí uma prova: esse artigo sequer tem o pudor de
mencionar a “sociedade civil”. Aqui já é MST, MPL e similares mesmo, sem
intermediários.
Enfim, para resumir tudo o
que foi dito até aqui: com o Decreto 8.243, (i) os “movimentos sociais” passam
a controlar determinados “mecanismos de participação social”; (ii) toda a
Administração Pública passa a ser obrigada a considerar tais “mecanismos” na
formulação de suas políticas. Isto é: o MST passa a dever ser ouvido na
formulação de políticas agrárias; o MPL, na de transporte; aquele sindicato que
tinge a cidade de vermelho de quando em quando passa a opinar sobre leis
trabalhistas. “Coletivos, movimentos sociais, suas redes e suas organizações”
se inserem no sistema político, tornando-se órgãos de consulta: na prática, uma
extensão do Legislativo.
"Back in the
U.S.S.R."!
Esse sistema de “poder
paralelo” não é inédito na História – e entender as experiências pretéritas é
uma excelente maneira de se compreender o que significam as atuais. É isso que,
como antecipei no início do texto, nos leva de volta a 1917 e aos “sovietes” da
Revolução Russa, possivelmente o exemplo mais conhecido e óbvio desse tipo de
organização. Se é verdade que “aqueles que não podem lembrar o passado estão
condenados a repeti-lo”, como diz o clássico aforismo de George Santayana, é
essencial voltar os olhos para o passado e entender o que de fato se passou
quando um modelo de organização social idêntico ao instituído pelo Decreto
8.243 foi adotado.
Essa análise nos leva ao
momento imediatamente posterior à Revolução de Fevereiro, que derrubou Nicolau
II. O clima de anarquia gerado após a abdicação do czar levou à formação de um
Governo Provisório inicialmente desorganizado e pouco coeso, incapaz de
governar qualquer coisa que fosse.
Paralelamente, formou-se
na capital russa (Petrogrado) um conselho de trabalhadores – na verdade, uma
repetição de experiências históricas anteriores similares, que na Rússia
remontavam já à Revolução de 1905. Tal conselho – o Soviete de Petrogrado –
consistia de “deputados” escolhidos aleatoriamente nas fábricas e quarteis. Em
15 dias de existência, o soviete conseguiu reunir mais de três mil membros,
cujas sessões eram realizadas de forma caótica – na realidade, as decisões eram
tomadas pelo seu comitê executivo, conhecido como Ispolkom. Nada diferente de
um MST, por exemplo.
A ampla influência que o
Soviete possuía sobre os trabalhadores fez com que os representantes do Governo
Provisório se reunissem com seus representantes (1º-2 de março de 1917) em
busca de apoio à formação de um novo gabinete. Isto é: o Governo Provisório foi
buscar sua legitimação junto aos sovietes, ciente de que, sem esse apoio, jamais
conseguiria firmar qualquer autoridade que fosse junto aos trabalhadores
industriais e soldados. O resultado dessas negociações foi o surgimento de um
regime de “poder dual” (dvoevlastie), que imperaria na Rússia de março/1917 até
a Revolução de Outubro: nesse sistema, embora o Governo Provisório ocupasse o
poder nominal, este na prática não passava de uma permissão dos sovietes, que
detinham a influência majoritária sobre setores fundamentais da população
russa. A Revolução de Outubro, que consolidou o socialismo no país, foi
simplesmente a passagem de “todo o poder aos sovietes!” (“vsia vlast’
sovetam!”) – um poder que, na prática, eles já detinham.
Antes mesmo do Decreto
8.243, o modelo soviético já antecipava de forma clara o fenômeno dos
“movimentos sociais” que ocorre no Brasil atualmente. Com o Decreto, a
similaridade entre os modelos apenas se intensificou.
Em primeiro lugar, e
embora tais movimentos clamem ser a representação do “povo”, dos
“trabalhadores”, do “proletariado” ou de qualquer outra expressão genérica,
suas decisões são tomadas, na realidade, por poucos membros – exatamente como
no Ispolkom soviético, a deliberação parte de um corpo diretor organizado e a
aclamação é buscada em um segundo momento, como forma de legitimação. Qualquer
assembleia de movimentos de esquerda em universidades é capaz de comprovar
isso.
Além disso, a
institucionalização de conselhos pelo Decreto 8.243 leva à ascensão política
instantânea de “revolucionários profissionais” – pessoas que dedicam suas vidas
inteiras à atividade partidária, em uma tática já antecipada por Lênin em seu
panfleto “Que Fazer?”, de 1902 (capítulo 4c). Explico melhor. Vamos supor por
um momento que o Decreto seja um texto bem intencionado, que de fato pretenda
“inserir a sociedade civil” dentro de decisões políticas (como, aliás, afirma o
diretor de Participação Social da Presidência da República neste artigo d’O
Globo). Ora, quem exatamente teria tempo para participar de “conselhos”,
“comissões”, “conferências” e “audiências”? Obviamente, não o cidadão comum,
que gasta seu dia trabalhando, levando seus filhos para a escola e saindo com
os amigos. Tempo é um fator escasso, e a maioria das pessoas simplesmente não
possui horas de sobra para participar ativamente de decisões políticas – é
exatamente por isso que representantes são eleitos para essas situações. Quem
são as exceções? Não é difícil saber. Basta passar em qualquer sindicato ou
diretório acadêmico: ele estará cheio de “revolucionários profissionais”, cuja
atividade política extraoficial acabou de ser legitimada por decreto
presidencial.
A questão foi bem resumida
por Reinaldo Azevedo, no texto que citei no início deste artigo. Diz o
articulista: “isso que a presidente está chamando de ‘sistema de participação’
é, na verdade, um sistema de tutela. Parte do princípio antidemocrático de que
aqueles que participam dos ditos movimentos sociais são mais cidadãos do que os
que não participam. Criam-se, com esse texto, duas categorias de brasileiros:
os que têm direito de participar da vida púbica [sic] e os que não têm. Alguém
dirá: ‘Ora, basta integrar um movimento social’. Mas isso implicará, necessariamente,
ter de se vincular a um partido político”.
Exatamente por esses
motivos, tal forma de organização confere a extremistas de esquerda
possibilidades de participação política muito mais amplas do que eles teriam em
uma lógica democrática “verdadeira” – na qual ela seria reduzida a praticamente
zero. Basta ver que o Partido Bolchevique, que viria a ocupar o poder na Rússia
em outubro de 1917, era uma força política praticamente irrelevante dentro do
país: sua subida ao poder se deve, em grande parte, à influência que exercia
sobre os demais partidos socialistas (mencheviques e
socialistas-revolucionários) dentro do sistema dos sovietes. Algo análogo
ocorre no Brasil atual: salvo exceções pontuais, PSOL, PSTU et caterva
apresentam resultados pífios nas eleições, mas por meio da ação de “movimentos
sociais” conseguem inserir as suas pautas na discussão política. As
manifestações pelo “passe livre” – uma reivindicação extremamente minoritária,
mas que após um quebra-quebra nacional ocupou grande parte da discussão
política em junho/julho de 2013 – são um exemplo evidente disso.
O sistema introduzido pelo
Decreto 8,243 apenas incentiva esse tipo de ação. O Legislativo “oficial” –
aquele que contém representantes da sociedade eleitos voto a voto, representando
proporcionalmente diversos setores – perde, de uma hora para outra, grande
parte de seu poder. Decisões estatais só passam a valer quando legitimadas por
órgãos paralelos, para os quais ninguém votou ou deu sua palavra de aprovação –
e cujo único “mérito” é o fato de estarem alinhados com a ideologia do partido
que ocupa o Executivo.
Pior: a administração
pública é engessada, estagnada. Não no sentido definido no artigo d’O Globo que
linkei acima (demora na tomada de decisões), mas em outro: os cargos decisórios
desse “poder Legislativo paralelo” passam a ser ocupados sempre pelas mesmas
pessoas. Suponhamos, em um esforço muito grande de imaginação, que o PT perca
as eleições presidenciais de 2018 e seja substituído por, digamos, Levy Fidelix
e sua turma. Com a reforma promovida pelo Decreto 8.243 e a ocupação de espaços
de deliberação por órgãos não eletivos, seria impossível ao novo presidente
implantar suas políticas aerotrênicas: toda decisão administrativa que ele
viesse a tomar teria que, obrigatoriamente, passar pelo crivo de conselhos,
comissões e conferências que não são eleitos por ninguém, não renovam seus
quadros periodicamente e não têm transparência alguma. Ou seja: ainda que o
titular do governo venha a mudar, esses órgãos (e, mais importante, os
indivíduos a eles relacionados) permanecem dentro da máquina administrativa ad
eternum, consolidando cada vez mais seu poder.
Conclusão
O Decreto 8.243 é,
possivelmente, o passo mais ousado já tomado pelo PT na consecução do “socialismo
democrático” – aquele sistema no qual você está autorizado a expressar a
opinião que quiser, desde que alinhada com o marxismo. Sua real intenção é
criar um “lado B” do Legislativo, não só deslegitimando as instituições já
existentes como também criando um meio de “acesso facilitado” de movimentos
sociais à política.
Boa parte dos leitores
dessa página podem estar se perguntando: “e daí?”. Afinal, sabemos que a
democracia representativa é um sistema imperfeito: suas falhas já foram
expostas por um número enorme de autores, de Tocqueville a Hans-Hermann Hoppe.
É verdade.
No entanto, a democracia
representativa ainda é “menos pior” do que a alternativa que se propõe. Um
sistema onde setores opostos da sociedade se digladiam em uma arena política,
embora tenda necessariamente a favorecimentos, corrupção e má aplicação de
recursos, ainda possui certo “controle” interno: leis e decisões
administrativas que favoreçam demais a determinados grupos ou restrinjam
demasiadamente os direitos de outros em geral tendem a ser rechaçadas. Isso de
forma alguma ocorre em um sistema onde decisões oficiais são tomadas e
“supervisionadas” por órgãos cujo único compromisso é o ideológico, como o que
o Decreto 8.243 tenta implementar.
Esse segundo caso, na
verdade, nada mais é do que uma pisada funda no acelerador na autoestrada para
a servidão.
Publicado originalmente:
spotniks.com