Por Fernando Capez
Bolsonaro não cometeu
crime de peculato, nem as infrações daí decorrentes, de formação de organização
criminosa e lavagem de dinheiro. Essa conclusão se assenta em três premissas:
(1) de acordo com os dispositivos regulamentares os presentes recebidos
integram seu patrimônio privado, uma vez que não foram doados em cerimônia
oficial de troca de presentes. Isto se aplica também aos relógios recebidos
pelo presidente Lula, doados pelo ex-presidente francês Jacques Chirác; (2) de
acordo com a decisão proferida pelo TCU, os bens personalíssimos pertencem à
pessoa do presidente e não ao acervo público, e a Portaria nº 59/2018, que
vigorava à época dos fatos, define joias como bens personalíssimos; (3) é fato
incontroverso que o ex-presidente não tinha conhecimento desse emaranhado de
regras e controvérsias jurídicas e, informado por sua assessoria, assim como
pelo Departamento de Documentação Histórica, de que os bens se classificavam
como de acervo privado, não teve, nem podia ter conhecimento (dolo) de qualquer
crime ou irregularidade, incidindo a regra do erro de tipo inevitável, a
excluir o crime.
Em 26 de outubro de 2021,
chega ao Brasil, a comitiva do Ministério das Minas e Energia, da viagem feita
à Arábia Saudita, na qual não se fez presente o ex-presidente Jair Messias
Bolsonaro. Dois dias depois, em 28 de outubro, o gabinete do referido
ministério envia um ofício ao Gabinete Adjunto de Documentação Histórica da
Presidência da República (GADH), constituído por experientes servidores de carreira,
sem vinculação política.
No dia 29 de outubro, o
GADH responde ao ofício. Na resposta, o GADH, órgão oficial e competente para
catalogar os documentos e bens recebidos pelo presidente da República, informa
que os presentes estão classificados no acervo privado, ou seja, o patrimônio
pessoal do ex-presidente. Todas essas providências foram tomadas sem a
participação do ex-presidente, como em qualquer outro gabinete presidencial do
Mundo. A informação recebida pelo ex-presidente é a de que os presentes não são
bens da União.
Tal decisão baseou-se no
Decreto nº 4.344, de 26 de agosto de 2002 cujo artigo 3º assim dispõe:
“Os acervos documentais
privados dos presidentes da República cujo art. 3º assim dispõe: “Os acervos
documentais privados dos presidentes da República são os conjuntos de (…) obras
de arte e objetos tridimensionais. O dispositivo não menciona nenhum limite de
valor, nem especifica a natureza desses bens. Seu parágrafo único, por sua vez,
dispõe que “os acervos de que trata o caput não compreendem os documentos
bibliográficos e museológicos recebidos em cerimônias de troca de presentes,
nas audiências com chefes de Estado e de Governo, por ocasião das visitas
oficiais ou viagens de Estado do presidente da República ao exterior, ou quando
das visitas oficiais ou viagens de Estado de chefes de Estado e de Governo
estrangeiros ao Brasil.”
Esse é o texto do diploma
normativo que regulamenta recebimentos de presentes. Desde que não seja troca
em cerimônias oficiais, os bens integrarão o patrimônio privado do presidente.
O referido decreto é tão explícito em relação a isso, que, em seu artigo 6º,
II, permite a venda dos bens recebidos, anotando apenas que, nesse caso, que:
“Em caso de venda do
acervo, a União tem direito de preferência, observado o disposto no artigo 10.
O art. 10, por sua vez,
diz que essa venda “deverá ser precedida de comunicação por escrito à Comissão
Memória dos Presidentes da República, que se manifestará, no prazo máximo de
sessenta dias, sobre o interesse da União na aquisição desses acervos”
(destacamos).
Decreto 4.344/2002 não
poderia ser mais claro
Se a União tem direito de
preferência para adquirir os bens, evidentemente estes não lhe pertencem, pois
não iria comprar algo que já integra seu patrimônio. A questão é óbvia e sobre
ela não há como se construir qualquer polêmica. Não é por outra razão que, no
período de 2003 a 2010, referente aos dois primeiros mandatos do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, foram recebidos 568
presentes e somente nove foram incorporados ao patrimônio da União, ao
passo que, no período de 2011 a maio de 2016, durante os quasse dois mandatos
da presidente Dilma Vanna Roussef, foram recebidos 144 presentes, dos quais
somente seis foram incorporados ao patrimônio da União. A explicação é simples.
De acordo com as normas regulamentares em vigor, só integram o acervo público,
presentes trocados em cerimônias oficiais, e não existe definição legal sobre o
conceito de “cerimônias oficiais”.
Foi então que, em 31 de
agosto de 2016, o Tribunal de Contas da União, em sessão plenária, procurou
conferir interpretação conforme a CF, ao Decreto 4.344/2002, entendendo que:
“Em que pese o decreto não
detalhar que também os presentes trocados protocolarmente sem cerimônia
específica para troca de presentes, devem igualmente integrar o patrimônio da
União, sob o prisma dos princípios da moralidade, legitimidade e razoabilidade,
a melhor aplicação ao tema é a de que quaisquer itens recebidos por trocas
oficiais são bens públicos, uma vez que o cidadão, na qualidade de Presidente
da República, somente está recebendo tal bem em função da natureza pública e
representativa do cargo que está temporariamente ocupando. Desse modo, o mais
razoável é que os presentes nesta condição recebidos (excluídos os de consumo,
por sua natureza depreciativa, e os de caráter personalíssimo) façam parte do
patrimônio da União, e não da pessoa física que, naquele momento, a representa oficialmente
[1]” (destacamos).
Como resta claro, a corte
de contas da União ressalvou expressamente que os bens de caráter
personalíssimo integram o acervo privado dos presidentes da República. Quanto
ao conceito de “personalíssimo”, não é necessário maior esforço hermenêutico
para concluir que tal expressão se refere a presentes doados intuito personae,
isto é, motivados por relações pessoais de admiração, amizade ou simpatia entre
líderes governamentais.
É intuitivo que o
ex-presidente francês Jacques Chirác, ao presentar Lula, quis manifestar sua
simpatia e afeto à sua pessoa, e não homenagear a República Federativa do
Brasil com um relógio. Seria ofensivo ao autor da homenagem recusar um presente
de natureza pessoal, doado para gerar prazer e satisfação ao homenageado, e não
para integrar um arquivo público.
Lula recebeu o presente em
razão de empatia pessoal com o colega francês. Assim, o presente é de sua
propriedade, pois foi ele, neste caso, e não a União, o homenageado. Esta é
exatamente a mesma hipótese do ex-presidente Jair Bolsonaro. Absolutamente,
nenhuma diferença. E por uma razão muito simples: ambos receberam bens para seu
uso pessoal. São frequentes os casos de autoridades do mais elevado nível em
todos os Poderes, presenteados com bens destinados ao seu uso pessoal, o que,
do ponto de vista da lei, não é crime.
Poderá configurar
improbidade administrativa, quando o doador do presente tiver algum interesse
que possa ser atendido pela autoridade presentada (Lei nº 8.072/92, art. 9º,
I), mas, crime não é. O peculato está previsto no artigo 312, caput, do CP:
“Apropriar-se o funcionário público de
dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem
posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheiro. Pena –
reclusão de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa”. Esse é o chamado
peculato-apropriação. “A ação nuclear típica consubstancia-se no verbo
apropriar. Assim como no crime de apropriação indébita (CP, art. 168), o agente
tem a posse (ou detenção) lícita do bem móvel, público ou particular, e inverte
esse título, pois passa a se comportar como se dono fosse [2]” (destacamos).
Resta claro que o
pressuposto lógico necessário para o crime de apropriação é o de que o sujeito
se aproprie do que não é seu. Ninguém se apropria daquilo que já lhe pertence.
Apropriar-se significa tomar para si, apoderar-se do alheio. Os presentes recebidos,
nos termos do Decreto n. 4.344/2002, não integram o acervo público da União.
Até mesmo a interpretação do TCU, ressalva que bens personalíssimos pertencem à
pessoa física do presidente. Para presidentes da República, não importa o valor
do presente.
Há bebidas de valor
elevado, mas que, por sua natureza perecível, não se destinam a ficar
armazenadas no acervo público presidencial. Tal definição não fica, portanto, a
cargo de subjetivismos, pois o Direito Penal não é um elástico a ser
movimentado de acordo com as contingências do momento.
Admitindo-se, porém, por
amor ao debate, que exista dúvida sobre o conceito de bem personalíssimo e
adotando-se como normal a política de dois pesos e duas medidas para Lula e
Bolsonaro, mesmo assim não há como dele exigir que tivesse conhecimento de que
os bens recebidos deveriam integrar o patrimônio da União, porque até agora,
nem mesmo a comunidade jurídica tem posicionamento uniforme quanto ao tema.
A esse respeito, a
Portaria nº 59, de 08 de novembro de 2018, classifica joias como de natureza
personalíssima. Em novembro de 2021, foi revogada pela Portaria nº 124. Ocorre
que o Gabinete Adjunto de Documentação Histórica, antes da revogação dessa
revogação, informara que os presentes estavam classificados no acervo privado.
Deste modo: (a) os
presentes são de propriedade privada do ex-presidente, como os de Lula também
são; (b) diante das informações recebidas pelo GADH e por sua assessoria, Jair
Bolsonaro não tinha como saber que os bens integravam o acervo da União (até
porque não integram). Nesta última hipótese, há o erro de tipo inevitável,
previsto no artigo 20 do CP, segundo o qual “o erro sobre elemento constitutivo
do tipo legal exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se
previsto em lei”.
Com esse emaranhado de
normas, interpretações subjetivas e procedimentos mal regulados, Bolsonaro não
tinha como saber se os presentes eram seus ou da União. Presumir o contrário é
tratar o tema de forma promocional e demagógica, sem compromisso com a
realidade e as regras jurídicas. O desconhecimento dessa elementar típica do
crime de peculato elimina o dolo, consistente na vontade de cometê-lo.
Conclusão é óbvia
Se não sabia que os bens
eram públicos, não pode ter querido deles se apropriar, logo, não houve
peculato doloso. O erro foi inevitável, já que até hoje não existe regra
definindo se tais bens são públicos ou privados. Com isso, não há crime, mas
ainda que tal erro pudesse ser evitado, restaria somente a forma culposa, ou
seja, Bolsonaro teria agido com imprudência.
Isso não ocorreu pois foi
toda a sua assessoria e órgãos oficiais que lhe informaram serem os presentes
de seu acervo privado. Mas, mesmo assim, incorreria no peculato culposo,
previsto no artigo 312, § 2º, do CP, o qual tem a pena máxima abstratamente
prevista de um ano de detenção, prescreve em três anos e, no qual, a reparação
do dano até a sentença irrecorrível extingue a punibilidade. Não haverá, neste
caso, organização criminosa, nem lavagem de dinheiro, a qual pressupõe o
conhecimento da natureza pública do bem alienado.
O fator mais preocupante
de todo esse contorcionismo jurídico para dar vazão à agora já indisfarçada
perseguição contra o ex-presidente Jair Bolsonaro encontra-se novamente na
adoção do método da “lava jato”, de sistemática violação das regras de direito
material e processual, resultando em dispêndio de energia, tempo e dinheiro
público para investigações, as quais, superado o momento de revanchismo e
polarização, acabam consideradas nulas e abusivas.