Os dados do relatório
Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil referentes a 2013 evidenciam que
a política indigenista em curso no país é omissa no que tange ao cumprimento
das diversas obrigações constitucionais e da efetivação dos direitos indígenas.
A total paralisação dos processos de demarcação de terras indígenas, os altos
índices de mortalidade infantil, suicídio, assassinato, racismo e de
desassistência nas áreas de saúde e educação indicam uma atitude de extremo
descaso do governo em relação às populações indígenas. Na publicação,
organizada pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a falta de empenho e
vontade política na proteção e promoção dos direitos desses povos fica evidente
também em uma análise dos dados do Orçamento Geral da União de 2013.
Um dos mais explícitos
indícios da omissão governamental foi a total paralisação das demarcações de
terras indígenas no ano passado, que teve um reflexo direto no acirramento dos
conflitos nas aldeias em todo o país. Apesar de uma homologação ter sido
assinada, nenhum procedimento demarcatório foi concluído em 2013. Desse modo, a
média anual de terras demarcadas da presidenta da República Dilma Rousseff
diminuiu para 3,6, a pior média desde o fim da ditadura militar, consolidando-a
como a chefe de Estado que menos demarcou terras indígenas na história recente
do país.
De acordo com os dados do
relatório, das 1.047 terras indígenas reivindicadas pelos povos atualmente,
apenas 38% estão regularizadas. Cerca de 30% das terras estão em processo de
regularização e 32% sequer tiveram iniciado o procedimento de demarcação por
parte do Estado brasileiro. Das terras indígenas regularizadas, em termos de
extensão territorial, 98,75% se encontram na Amazônia Legal. Enquanto isso,
554.081 dos 896.917 indígenas existentes no Brasil, segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, vivem nas outras regiões
do país, que têm apenas 1,25% da extensão das terras indígenas regularizadas.
Existem 30 processos de demarcação de áreas já identificadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai) como terras indígenas tradicionais que não têm nenhum impedimento administrativo ou litígio judicial. Ou seja, não há nenhuma pendência ou obstáculo para a efetivação da demarcação dessas terras. Desses 30 processos, 12 dependem somente da assinatura da Portaria Declaratória pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, 17 terras indígenas aguardam a homologação pela presidenta da República, Dilma Rousseff, e um processo aguarda a expedição do Decreto de Desapropriação, também pela presidenta Dilma. Outros cinco processos estão na mesa da presidenta da Funai, Maria Augusta Assirati, aguardando apenas a assinatura de aprovação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação. Estes dados evidenciam ainda que a proposta de realizar Mesas de Diálogo como forma de resolver a morosidade dos processos de demarcação e os conflitos fundiários foi totalmente fracassada.
De acordo com a
Constituição Federal, todas as terras indígenas deveriam ter sido demarcadas
até 1993. No entanto, os compromissos assumidos com os setores vinculados ao agronegócio,
às empreiteiras, mineradoras e empresas de energia hidrelétrica impossibilitam
o governo de cumprir suas obrigações constitucionais. Os interesses privados
destes grupos encontram ressonância na política desenvolvimentista praticada
pelo governo e também em seus interesses eleitoreiros. “Como é de conhecimento
público, estes setores são justamente os inimigos históricos dos povos
indígenas e os principais responsáveis pelos massacres, etnocídios e
espoliações dos territórios destes povos, além de outros tipos de violência”,
evidencia Cleber Buzatto, secretário executivo do Cimi.
Também não é pela falta de
recursos financeiros que as demarcações não foram realizadas. Nos
desdobramentos do programa Fiscalização e Demarcação de Terras Indígenas,
Localização e Proteção de Índios Isolados e de Recente Contato existe uma ação
denominada “Delimitação, Demarcação e Regularização de Terras Indígenas”, cuja
dotação orçamentária em 2013 foi de R$ 21,642 milhões. No entanto, foram
liquidados apenas R$ 5,4 milhões (ou 24,96% do montante). “Observa-se,
portanto, que muitos outros procedimentos administrativos poderiam ter sido
conduzidos com os 76,04% dos recursos que deixaram de ser aplicados. Portanto,
as razões para a não demarcação são vinculadas ao plano político e aos projetos
de desenvolvimento do país, nos quais os povos indígenas têm sido considerados
irrelevantes e desnecessários”, afirma Iara Bonin, em sua análise sobre a
execução orçamentária.
Apesar do orçamento para a
assistência em saúde indígena, segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena
(Sesai), ter quadruplicado nos últimos quatro anos, ela continuou marcada por
uma absoluta omissão na implementação de ações - algumas bastante básicas - que
poderiam salvar milhares de vidas anualmente. Um exemplo devastador dessa
omissão é o índice de mortalidade infantil em 2013. Dados da Sesai informam que
morreram 693 crianças de 0 a 5 anos entre os meses de janeiro e novembro. O
caso mais impressionante é o do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei)
Yanomami, em Roraima, com 124 mortes. Enquanto a Sesai relata que nesse mesmo
período ocorreram 17 mortes de crianças menores de 5 anos no Mato Grosso do
Sul, dados mais recentes do Dsei, de abril de 2014, apresentam um total de 90
óbitos de crianças menores de 5 anos somente neste estado, entre os meses de
janeiro a dezembro. Ainda de acordo com o Dsei/MS, o coeficiente de mortalidade
infantil de menores de 5 anos é de 45,9 para cada 1.000 indígenas nascidos,
mais que o dobro da média nacional em 2013, que é de 19,6 segundo o IBGE,
variando de acordo com as regiões.
Novamente, verifica-se que
o problema não está relacionado à falta de recursos. Para o programa Saneamento
Básico em Aldeias Indígenas para Prevenção e Controle de Agravos foi autorizada
a execução de R$ 27,7 milhões, mas o governo utilizou irrisórios 1,39%,
deixando de aplicar, portanto, RS 27,3 milhões. A utilização destes recursos
para a construção de poços artesianos em várias regiões brasileiras certamente
diminuiria o índice de doenças e agravos que vitimizam especialmente as
crianças, como a diarreia. “Apesar de todas as denúncias apresentadas pelo
movimento indígena e por entidades indigenistas, além de ações judiciais
impetradas pelo Ministério Público Federal (MPF), o governo federal mantém-se
insensível frente às mortes causadas por doenças facilmente tratáveis”, considera
Roberto Liebgott, representante do Cimi na Comissão Intersetorial de Saúde
Indígena (Cisi).
O Mato Grosso do Sul
continua sendo o estado que mais viola os direitos indígenas. Em 2013 foram
registradas no estado 33 vítimas de assassinatos (62% do total no país), 16
casos de tentativas de assassinatos (de um total de 29 no país) e, segundo a
Sesai, 73 vítimas de suicídios. Este índice configura-se como o maior em 28
anos, de acordo com os registros do Cimi. Dos 73 indígenas que se suicidaram,
72 eram do povo Guarani-Kaiowá, a maioria com idade entre 15 e 30 anos.
Do total de 33
assassinatos no estado, 31 ocorreram entre indígenas do povo Guarani-Kaiowá e
dois casos do povo Terena. Nos últimos 11 anos, os levantamentos do Cimi
mostram que pelo menos 616 indígenas foram assassinados no país, sendo que 349
destas mortes ocorreram no Mato Grosso do Sul, onde a maioria das comunidades
vive em situação de extrema precariedade, em acampamentos improvisados nas
margens das rodovias, nas áreas de preservação obrigatória – faixa de domínio –
dentro das fazendas, ou confinados em pequenas reservas criadas pelo Serviço de
Proteção aos Índios (SPI), no início do século passado. A Reserva Indígena de
Dourados, por exemplo, apresenta a maior densidade populacional entre todas as
comunidades tradicionais do país, abrigando mais de 13 mil indígenas em 3,6
hectares de terra. Nela aconteceram 18 dos 73 casos de suicídio no estado em
2013.
Também foi frequente em 2013 a difusão de discursos com teor preconceituoso e racista em meios digitais de informação, jornais, televisão e rádio. Com o registro de 23 ocorrências, estes casos mais que dobraram em relação a 2012, quando 11 registros foram feitos. Os polêmicos vídeos dos deputados federais Luis Carlos Heinze (PP-RS) e Alceu Moreira (PMDB-RS) inserem-se nesses casos de racismo e incitação à violência contra os povos indígenas. “Em 2013, o crime de racismo manifestou-se de diferentes formas contra os povos indígenas: no impedimento de usarem o transporte coletivo ou de estudantes frequentarem a escola; na não contratação, mesmo que para subempregos; nas inúmeras agressões e ofensas verbais; no não reconhecimento da sua condição de indígena; na impossibilidade de acesso a benefícios sociais; na recusa de receberem atendimento médico; na obrigação de crianças indígenas lavarem banheiros nas escolas e no recebimento de merenda menor que as crianças não indígenas; e na condenação por crimes, mesmo sem provas substanciais, como foi o caso que envolveu o povo Tenharim, no Amazonas”, resume a antropóloga Lúcia Rangel, coordenadora da pesquisa do relatório.
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