As bruxas e o patrulhamento ideológico sobre a sociedade


Vladimir Chaves

Enquanto a Inquisição papal da Idade Moderna promovia sua implacável caçada aos judeus na Península Ibérica, eis que as principais vítimas das perseguições religiosas na Alemanha, França, Itália e Inglaterra foram as mulheres acusadas de bruxaria. E talvez isto ajude a explicar o porquê dos festejos do Halloween neste 31 de outubro entre os povos de cultura anglo-saxônica. Inclusive nos Estados Unidos.


Geralmente, quando pensamos em bruxas, vem logo à nossa mente a ideia de uma mulher velha, feia, nariguda e malvada, capaz de enganar as inocentes donzelas oferecendo-lhes maçãs envenenadas como no velho conto da Branca de Neve. Porém, basta mergulharmos um pouco na História para descobrirmos quem eram essas mulheres perseguidas por feitiçaria pela Igreja na Europa entre o final da Idade Média e início da Idade Moderna.



Numa época de extrema pobreza e grande ignorância, em que a Medicina não podia desenvolver-se no Ocidente por causa do obscurantismo imposto pela religião, restava ao povo tentar o alívio para as suas doenças através da aspersão de água benta ou por meio de tratamentos à base de ervas. No caso das mulheres humildes, quando sofriam de problemas ginecológicos ligados à esterilidade e doenças do aparelho reprodutor, a exclusão tornava-se ainda maior. Os sacerdotes católicos, sendo eles homens e celibatários, não costumavam prestar atendimento em casos desta natureza, tornando impossível o diagnóstico e o tratamento da enfermidade.



Foi dentro deste contexto que surgiram as bruxas medievais que, na verdade, nada mais eram do que meras curandeiras dos vilarejos da Europa. Em sua respeitável obra, A fabricação da loucura: um estudo comparativo entre a Inquisição e o movimento de saúde mental, o psiquiatra húngaro Thomas Szasz ensina que a função social das bruxas era cumprida nas comunidades através de uma medicina popular que chegava a ser mistificada pela população. Através delas é que as mulheres pobres podiam de fato experimentar algum tratamento ainda que de maneira bem rudimentar a exemplo do que existiu com mais frequência até décadas atrás no interior do Brasil com as "benzedeiras".



Não demorou muito para que o catolicismo medieval passasse a ver a atividade curandeira das bruxas como uma ameaça ao seu poder religioso. Pelo fato da Igreja considerar as doenças do corpo uma consequência da vida pecaminosa, os meios de obtenção da cura física deveriam ser alcançados somente dentro da esfera espiritual. Logo, as bruxas, assim como os médicos judeus, representavam uma quebra do monopólio eclesiástico. Então, uma maneira de atacá-las foi dizer que tais mulheres tinham pactos com o demônio.


Com a edição da bula Summis desiderantes affectibus, em 1484, o papa Inocêncio VIII (1432-1492) concedeu permissão aos inquisidores para que reprimissem as atividades das bruxas através todos os meios possíveis. Quem tentasse impedir a ação dos inquisidores poderia ser até excomungado. Com isto, surgiu um terrível livro chamado Malleus Maleficarum (O Martelo das Feiticeiras), escrito em 1487 pelos dominicanos alemães Heinrich Kraemer (1430-1505) e James Sprenger (1435-1495).


A obra dos dois inquisidores, que se tornou um manual de caça às bruxas por aproximadamente uns 200 anos, era dividida três partes: a primeira ensinava sobre como reconhecer as bruxas em seus múltiplos disfarces e atitudes; a segunda abordava os supostos malefícios da bruxaria; e a terceira dispunha sobre os procedimentos que eram "legalmente" aplicados contra as bruxas, demonstrando como inquiri-las e condená-las.



Apesar da Igreja Católica ter oficialmente condenado o manual de Heinrich Kraemer e James Sprenger, com base num posicionamento da Universidade de Colônia (Alemanha), eis que, na prática, o Malleus popularizou-se rapidamente. Entre os anos de 1487 e 1520, a obra foi publicada 13 vezes. E, de 1574 até a edição de Lyon de 1669, houve um total de 16 novas reimpressões. Com exceção da Bíblia, pode-se considerar que aquela foi a obra mais vendida até a publicação do livro El Progreso del Peregrino, de John Bunyan, em 1678, sendo que não apenas os inquisidores católicos basearam-se na doutrina demonológica de Kraemer como até mesmo os protestantes nos hediondos julgamento proferidos contra as bruxas.



Assim, viu-se na Europa e também na América do Norte um festival de ignorâncias praticado contra as mulheres. Estas, ao serem presas, eram submetidas a um minucioso exame físico afim de que fossem encontradas evidências de pactos com o demônio através de marcas no corpo. E para que a vítima confessasse o "crime" de bruxaria, os inquisidores submetiam-na à tortura, conforme nos relata o ex-padre católico Marcelo da Luz em seu valioso livro Onde a religião termina?:



"Dessa forma, qualquer sinal de nascença, pintas ou mesmo lesões na pele, quando encontradas, serviam de provas contra as vítimas. Quando nada era encontrado, os inquisidores ou juízes encarregaram outras pessoas, inclusive médicos, na busca de marcas infernais invisíveis, supostamente imunes à dor ou ao fogo. O método usado para descobri-las era a perfuração, palmo a palmo, do corpo da acusada. Houve também, na Inglaterra, durante a segunda metade do século XVII, a prática da provação pela água. A vítima, após ter seus membros cruzados e amarrados, era jogada em água profunda, três vezes se necessário. Acreditava-se não ser a bruxa capaz de afundar, pois rejeitara as águas do batismo. Se afundasse, era inocente, mas esta constatação mostrava-se tardia e elas geralmente morriam afogadas."



Até onde a consciência humana, cega pelo dogma religioso, pode ser capaz de promover a destruição e a morte?





A caçada às bruxas, na verdade, foi resultado da imposição desse dogmatismo através de um patrulhamento ideológico sobre a sociedade. Mas foi também uma violência praticada contra as mulheres, um resultado da desarmonia entre o masculino e o feminino que existe na religião cristã capaz de gerar a misogenia. Principalmente no catolicismo romano em que os padres são proibidos de se casarem. E, por terem o desejo sexual reprimido dentro de si mesmos, os inquisidores transferiram suas loucuras para o mundo exterior, demonizando-o a tal ponto de matarem as mulheres que julgavam ser "bruxas" porque, na certa, despertavam seus desejos naturais.



No século XX, que foi uma época menos religiosa, pode-se dizer que a caçada às bruxas continuou sob outras formas. Não só no Brasil e na América Latina, como em outras partes do mundo, muitos foram perseguidos por razões de ideologia política. No contexto da Guerra Fria, pessoas consideradas comunistas chegaram a sofrer diversos tipos de preconceitos. E muitas delas foram presas, espancadas, torturadas e mortas.



A quem interessa este patrulhamento ideológico senão às classes dominantes que, para se manterem no poder, sempre necessitaram oprimir a população explorada economicamente?



Atualmente, ainda que as constituições dos países ocidentais protejam as liberdades de pensamento, de crença e de ideologia política, sabe-se que, na prática, há um preconceito contra quem decide pensar. Tem-se hoje um ambiente já formatado em que o ser pensante pode ser ridicularizado, abafado ou considerado como um "chato". Vive-se numa aparente liberdade para manifestar a opinião. Porém, em meio a ruídos dispersores e diante de uma audiência condicionada a uma aprovação externa que nem sempre racionalizada pelo público destinatário. Ou seja, ainda existe uma caçada às bruxas silenciosa digamos assim.



Nos dias das bruxas, em que alguns jovens do nosso país aderiram às modas norte-americanas dos bailes à fantasia, poucos sabem acerca das perseguições religiosas praticadas no passado. Quase ninguém desconfia que a demonização do outro é um golpe baixo dos que já não possuem argumentos lógicos afim de convencerem pela racionalidade. Então só lhes resta satanizar o "herege" (gr. hairetikis), isto é, o "indivíduo enquanto agente de escolha".



Rodrigo Ancora da Luz

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