Entrevista especial com João Carlos Caribé
“O Marco Civil da Internet
era um projeto reverenciado no mundo todo: várias organizações internacionais
achavam o texto espetacular, uma proposta incrível, e aí nossos parlamentares
conseguiram estragar o projeto”, lamenta o publicitário.
De referência
internacional como normativa que define os princípios, direitos e deveres dos
usuários da internet, o Projeto de Lei do Marco Civil, tal como está escrito
atualmente, passou a ser criticado inclusive pelos ativistas que acompanharam a
sua elaboração desde 2009. Entre eles, está João Carlos Caribé, que em
entrevista à IHU On-Line, por e-mail, foi enfático em relação aos pontos
inegociáveis a partir da proposta original. “Neutralidade da rede não se
negocia de jeito nenhum, privacidade não se negocia de jeito nenhum, e a
liberdade também não se negocia de jeito nenhum. Não abrimos mão desse tripé.”
Caribé esclarece que o
texto do Marco Civil foi alterado pela primeira vez na Casa Civil e a versão
enviada à Câmara dos Deputados já propunha a quebra da neutralidade. “As
modificações na questão de neutralidade estavam muito claras: conforme
regulamentação. Ou seja, para quem não está ligado, essa expressão passaria sem
maiores problemas”. Segundo ele, essa versão do texto é a que o deputado Eduardo
Cunha (PMDB-RJ) “chama de original, mas não é. O texto foi deformado para
atender as empresas de telecomunicações. Além disso, esse é o texto que ele
quer votar, porque quem vai regulamentar a rede será a ANATEL. E, por sua vez,
a ANATEL já está com tudo pronto. (...)
A ANATEL já fez a consulta
pública acerca da neutralidade, já definiu mais ou menos como ela irá
regulamentar isso e só está esperando o Marco Civil virar lei para regulamentar
a neutralidade”, denuncia.
Na avaliação de Caribé, as
alterações feitas no texto original do Marco Civil demonstram as estratégias
das empresas de telecomunicações. “Para elas, interessa que o Marco Civil não
seja votado nunca; caso seja votado, elas vão tentar inserir o conceito de
“liberdade de negócios” no texto. Ocorre que mais adiante, no Senado, elas
tentarão derrubar o princípio da neutralidade. Ou seja, para as empresas de
telecomunicações, o principal ponto de discórdia é a neutralidade da internet”,
assegura. Na entrevista a seguir, o publicitário esclarece quais são os outros
pontos de divergências em torno do Marco Civil, e assegura: “A internet
justamente funciona porque é uma rede livre, onde todos podem criar e
compartilhar conteúdo; é uma rede plural. Sem a neutralidade, tudo vai acabar.
Nós vamos voltar a esse antigo modelo de rede com curadoria, com conteúdo
priorizado ou com ‘guardas’, digamos assim. Será horrível”.
João Carlos Caribé é
publicitário, pós-graduado em Mídias Digitais e atua como consultor e ativista
pelos direitos e inclusão digital. Seu blog é entropia.blog.br.
Confira a entrevista:
IHU On-Line - O Projeto de
Lei do Marco Civil era considerado avançado, mas o texto foi modificado
diversas vezes. Quais são os principais pontos de discussão e divergência em
torno do atual texto do Marco Civil da Internet? Quais grupos defendem quais
posições?
João Carlos Caribé – O
texto original era ótimo, mas depois de uma série de audiências públicas, foi
elaborado outro, próximo do ideal. O problema é que existem configurações de
forças muito fortes dentro da Câmara dos Deputados e, então, depois que o texto
estava pronto e entrou em tramitação, essas forças começaram a atuar – ocorre
que elas não participam do debate público, ou seja, agem sempre de portas
fechadas – e se organizaram, num primeiro momento, em dois blocos dentro da
Câmara: o bloco da Globo e o das empresas de telecomunicações e de copyright,
que queriam que o Marco Civil inserisse o parágrafo 2º, o qual previa remover o
conteúdo de copyright sem ordem judicial.
Posteriormente, elaboramos
uma proposta para melhorar um pouco isso, porque o texto estava muito ambíguo e
permitiria que qualquer um, baseado nessa premissa, pedisse para retirar um
conteúdo da rede. Eu mesmo utilizei uma figurinha do tamanho de um selo para ilustrar
um texto, e mandaram retirá-la do ar, porque era a imagem de capa de um livro
do Chris Anderson e, ao utilizá-la, eu violava os direitos autorais do
escritor. Ou seja, conteúdos culturais são removidos da rede por conta de uma
bobagem. Pior ainda foi o caso envolvendo a Folha de São Paulo e a Falha de São
Paulo. Os membros da Folha colocaram a Falha na Justiça com uma série de
argumentos de que eles violaram a marca “Folha”. Essa medida abriu um
antecedente perigoso. Mas essa premissa do parágrafo 2º foi a condição que as
empresas de comunicações e a indústria de copyright exigiram para passarem a
apoiar o Marco Civil.
As empresas de
telecomunicações querem porque querem quebrar a neutralidade da rede, pois
pretendem ganhar dinheiro com isso. Carol Conway, advogada do Universo Online,
fez um estudo e descobriu que as empresas de telecomunicações lucram quatro
vezes mais do que os bancos.
Recentemente foi publicado
um artigo mostrando que muitas dessas empresas mandam quase todo o seu lucro
para o exterior. Ou seja, nós estamos utilizando telefone para financiar os
países do Norte.
Um dos problemas mais
graves do governo Dilma e do sistema do governo em si é atuação por emoção. Com
o episódio do Snowden, que divulgou as espionagens da NSA, alguém soprou no
ouvido da Dilma dizendo que o ideal era que as empresas de conteúdo que atuam
no Brasil tivessem Data Center. Mas este argumento serve a dois propósitos. Em
primeiro lugar, não resolve o problema para o qual foi inventado, ou seja, ter
o Data Center no Brasil não significa que os usuários terão seus dados
protegidos. Muito pelo contrário, quer dizer que as organizações brasileiras
poderão espionar os dados do usuário. Em segundo lugar, com o Data Center no
Brasil, fica muito mais fácil de ter resposta de remoção de conteúdo.
Em relação a isso, a
proposta do Marco Civil era outra. Existem muitas ações de remoções de conteúdo
do Google, do Facebook e de sites internacionais na Justiça brasileira, mas os
membros dessas organizações alegam que o servidor deles está fora do Brasil,
então eles não estão sujeitos às leis brasileiras e não irão remover nenhum
conteúdo. Então, a utilização do Data Center, baseado nesse argumento, cai por
terra. Nesse sentido, começaram a estragar o Marco Civil, e muitas normas de
vigilância foram inseridas de última hora no texto.
Liberdade de negócios
Além disso, foi inserida
na definição de neutralidade a expressão “liberdade de negócios”. Essa mudança,
para mim – e alguns advogados também concordam com a minha preocupação –, é um
gancho para as empresas de telecomunicações abrirem ações na Justiça para
quebrarem a neutralidade com base na premissa de liberdade de negócios.
Essa é a “pegadinha” que
eles estão inserindo no código do Marco Civil. Não tem nenhuma explicação para
esta expressão estar lá a não ser essa. A partir dessas alterações, você vê
como foram estragando um projeto de lei que era maravilhoso. Era um projeto
reverenciado no mundo todo: várias organizações internacionais achavam o Marco
Civil espetacular, uma proposta incrível, e aí nossos parlamentares conseguiram
estragar o projeto.
Artigo 16
No novo texto também foi
inserido o artigo 16 – que é um dos piores –, por pressão da Polícia Federal e
dos bancos. Esse artigo permite, tecnicamente, que se registrem os meta-dados
dos usuários. Ou seja, dentro do artigo 16 tinha a opção dos logs. O Marco
Civil, quando foi criado, era justamente uma resposta ao AI-5 Digital do
projeto Azeredo, que não tratava dos log, os quais seriam abordados no Marco
Civil, que determinava o seguinte: provedor de conexão registra somente o log
de conexão, que nada mais é do que o IP que ele deu ao usuário, e a data e a
hora. O provedor de conteúdo, por sua vez, registra o acesso do usuário. Então,
por exemplo, quando uma pessoa faz um comentário em um blog, ali fica
registrado o IP dele e o horário em que entrou. O WordPress faz isso
automaticamente, como o Facebook e o Twitter estão sempre registrando o IP e a
hora em que a pessoa entrou. Mas isso aí, no texto original do Marco Civil, era
algo facultativo, ou seja, não era obrigatório registrar esse acesso. Ou seja,
o site de conteúdo só era obrigado a registrar esse acesso em caso de ordem
judicial.
O Marco Civil também
proibia que o provedor de conexão registrasse o acesso às aplicações. Hoje, sem
essa normativa, a Oi, por exemplo, usa uma ferramenta que foi supostamente
banida da Inglaterra. Trata-se de um software que fica registrando tudo o que o
usuário faz. Quando você conecta pela Oi, pela Velox, sua navegação é
totalmente vigiada. A operadora registra todas as páginas que você visita para
te oferecer publicidade diferenciada. Esse é o argumento da empresa. Mas isso é
um perigo.
IHU On-Line - Qual a
influência das teles na mudança do Marco Civil tal como está escrito?
João Carlos Caribé - As
teles pressionaram, e Eduardo Cunha é o principal porta-voz delas. As teles têm
duas estratégias: para elas, interessa que o Marco Civil não seja votado nunca;
caso seja votado, elas vão tentar inserir o conceito de “liberdade de negócios”
no texto.
Ocorre que mais adiante,
no Senado, elas tentarão derrubar o princípio da neutralidade. Ou seja, para as
empresas de telecomunicações, o principal ponto de discórdia é a neutralidade
da internet, a qual, em termos gerais significa o seguinte: tudo que trafega na
internet, seja texto, vídeo, uma música, ou uma conversa feita pelo Skype ou
pelo WhatsApp, ou qualquer coisa parecida, é transformado em pacotes de dados e
viaja pela rede dessa forma.
Então, a neutralidade
significa que todos esses pacotes são iguais perante a rede, ou seja, não
existe uma prioridade de um tipo de pacote baseado no seu conteúdo ou na sua
origem. O que as teles querem fazer? Elas querem justamente o contrário, ou
seja, querem poder restringir os pacotes de dados com base no seu conteúdo e
sua origem. Quais são as implicações disso? Você está acostumado a utilizar um
buscador que não é o Google, mas a empresa de telecomunicação não fez um acordo
com esse buscador, e aí demorará uma eternidade para carregá-lo, enquanto o
Google carregará em um instantinho.
Você tentará fazer uma
ligação no Skype e não vai conseguir porque a conexão estará péssima. A Virtua
faz isso hoje com o YouTube, por exemplo. Você acessa um vídeo e o vídeo cai.
Ou seja, eles fazem esse traffic shapping que é nada mais que a quebra da neutralidade.
Eles gerenciam o tráfico de acordo com o pacote, com a origem e o destino. E
para eles, é um ótimo negócio. Só que isso acaba completamente com a
possibilidade de inovação da internet.
Uma vez que se quebre a
neutralidade, o usuário só terá contato com provedores de conteúdo, e só vai
poder fazer negócio na internet quem tiver dinheiro. Então, as teles passarão a
ser os donos da internet. E ela vai começar a ser fragmentada, segmentada.
IHU On-Line – O texto
rompe com a ideia central de liberdade e funcionamento da internet?
João Carlos Caribé – O
texto atual subverte tudo. Vamos deixar de ter internet para ter uma espécie de
América Online - AOL. No início da internet, nos anos 1990, 1996, a América
Online nos Estados Unidos era uma grande rede privada de conteúdo. Inclusive, o
próprio Bill Gates, quando criou a MSN, que era Microsoft Net Work, uma rede
concorrente à American Online, falou que a internet não iria dar certo, e
quebrou a cara. A internet justamente funciona porque é uma rede livre, onde
todos podem criar e compartilhar conteúdo; é uma rede plural. Mas sem a
neutralidade, tudo vai acabar. Nós vamos voltar a esse antigo modelo de rede
com curadoria, com conteúdo priorizado ou com “guardas”, digamos assim. Será
horrível.
Não vai nem fazer sentido
chamar o que querem criar de internet. Poderemos chamá-la de “rede de
conteúdos”, algo mais ou menos assim. E as teles insistem em uma tese ainda
mais absurda: a de que o pobre só acessa e-mail. Entretanto, Mário Brandão, que
é presidente da Associação Brasileira de Centro de Inclusão Digital - ABCDI,
que são as Lan Houses, fala que acontece o contrário: a pessoas que utilizam as
Lan Houses acessam muitos vídeos, fazem muito learnings, usam muito conteúdo
multimídia, mais até do que você ou eu. Então, a proposta das teles está
totalmente equivocada na sua concepção.
IHU On-Line - Quais são as
mudanças que você sugere no texto atual do Marco Civil? Que questões são
inegociáveis comparando o texto original e o texto atual?
João Carlos Caribé -
Neutralidade da rede não se negocia de jeito nenhum, privacidade não se negocia
de jeito nenhum, e a liberdade também não se negocia de jeito nenhum. Não
abrimos mão desse tripé. Então, não queremos de jeito nenhum, entre outros, o
artigo 16, porque ele não tem o menor sentido e acaba com o Marco Civil. Nós
tivemos uma reunião em Brasília com vários coletivos da sociedade civil, e
nessa reunião de dois dias elaboramos um documento que foi publicado no IBG e
na Reuters. Nesse documento, fizemos uma crítica bem pontual ao Marco Civil,
inclusive com algumas propostas de redação dos artigos que achamos ruins.
O problema todo é que
existe uma pressão muito grande em cima do próprio relator, e a tendência é que
o texto vá ao Plenário do jeito que está, ou seja, com todos esses defeitos. O
problema é que se votarem nesse texto e ele passar para o Senado, será uma
desgraça.
A Dilma, por exemplo, não
tem o menor conhecimento de causa, é muito mal informada, e para ela, está tudo
bem. O que o Paulo Bernardo fala ou o que outra pessoa fala, para ela, é o
certo; ela é muito mal assessorada em relação à internet. Então, o Marco Civil,
que era uma coisa maravilhosa, pode virar um terror. Enviamos uma carta para o
Ministro da Justiça, para o relator, para o Presidente da Câmara e para a
Presidente da República, dizendo qual é a nossa posição, que apoiamos o Marco
Civil com determinadas condições. Mas aparentemente eles não estão querendo
ceder nem a esses argumentos.
IHU On-Line - Considerando
a história e o contexto em que surge o Marco Civil, como o senhor avalia as
diferentes posições em torno do texto? O que essa mudança revela acerca da
postura do governo em relação ao projeto? Não dá para dizer que o governo não
entende do assunto.
João Carlos Caribé - O
governo pode até não entender, mas quem mexeu no texto, entende. Sabe cara de
babaca? Essa é a nossa cara diante das alterações do texto. Nós trabalhamos,
nos engajamos no debate do Marco Civil, construímos, melhoramos, aprimoramos o
texto em duas consultas públicas. O texto estava bem “afinadinho” e foi para a
Casa Civil na transição dos governos Lula/Dilma.
Aconteceu que dentro da
Casa Civil já houve uma deformação do texto, porque o Ministro Paulo Bernardo
já estava vendido para as empresas de telecomunicações. O Paulo Bernardo é uma
vergonha; ele é o Ministro das Teles, não é o Ministro das Comunicações. O
valor em dinheiro que ele já doou para as empresas de telecomunicações, em
pacotes de bondades, chega a ser vergonhoso.
Ele entregou o texto para
a Câmara dos Deputados com algumas modificações. O texto foi enviado da Casa
Civil para a Câmara, curiosamente, em um dia em que eu estava lá, fazendo um
Seminário do PL Azeredo e, por acaso, eu estava na mesa para falar quando chegou
a notícia de que o texto tinha acabado de ser enviado para a Câmara dos
Deputados. Então nós fomos ver o texto, e as modificações na questão de
neutralidade estavam muito claras: conforme regulamentação. Ou seja, para quem
não está ligado, essa expressão passaria sem maiores problemas. Esse texto já
alterado pela Casa Civil é o texto que Eduardo Cunha chama de original, mas não
é.
O texto foi deformado para
atender as empresas de telecomunicações. Além disso, esse é o texto que ele
quer votar, porque quem vai regulamentar a rede será a ANATEL. E, por sua vez,
a ANATEL já está com tudo pronto, inclusive já houve consulta pública. E aí
quando você começa a entender todas as jogadas, você percebe como esses caras
jogam bem.
A ANATEL já fez a consulta
pública acerca da neutralidade, já definiu mais ou menos como ela irá
regulamentar isso e só está esperando o Marco Civil virar lei para regulamentar
a neutralidade. E como os conselheiros da ANATEL são indicados pelo governo,
então a configuração da ANATEL, deste governo, está totalmente “ANATELIS”. Tem
somente um conselheiro que é “pseudo sociedade civil”, mas que na verdade foi
funcionário da Telemar. Então, as decisões da ANATEL são basicamente pró
empresas de telecomunicações e contra o cidadão comum/usuário.
(Por Patricia Fachin)
Publicado originalmente no
Site Instituto Humanitas Unisinos