Bruno José Daniel Filho,
irmão do ex-prefeito petista assassinado há 12 anos reclama que o julgamento
dos acusados nunca chega ao fim.
O desvendamento das razões
do assassinato de Celso poderá nos levar ao questionamento dos fundamentos a
partir dos quais é feita a política em nosso país. E quem sabe poderemos
caminhar para um outro jeito de fazê-la pautada pela utopia de uma sociedade mais
justa e solidária, cujo alicerce é o respeito aos direitos humanos, dentre eles
o direito à vida, coisa que Celso não teve. (Marilena Nakano e Bruno Daniel,
16/04/2010, França).
Mais um ano se passou, sem
que ocorressem novidades no plano legal relativas ao assassinato de Celso. Há,
no entanto, dois livros lançados em 2013, cujos autores, ao escreverem sobre
suas memórias, tratam daquele assunto: Assassinato de reputações, de Romeu Tuma
Júnior1 e Gracias a la vida, de Cid Benjamim2. Eles apontam fatos, circunstâncias
e problemas existentes em torno de sua morte e contribuem para uma reflexão
sobre a importância de transformar o Brasil num país melhor.
No plano legal, algumas
conquistas aconteceram ao longo dos 12 anos que se passaram:
- dos sete indiciados pelo
assassinato de Celso, seis foram julgados e condenados a penas que variam de
dezoito a vinte e quatro anos de prisão. Foram aceitas, por júri popular, as
teses defendidas pelo Ministério Público, segundo as quais houve um crime de
mando, de cujo planejamento e pagamento teria participado Sérgio Gomes da
Silva, conhecido como Sombra, ex-segurança de Celso, tido por seu amigo e que,
armado, conduzia a Pajero blindada quando de seu seqüestro;
- Sérgio Sombra chegou a
ficar preso por sete meses, tendo sido solto pelo então presidente do STF.
“Segundo o promotor Amaro, o processo foi muito rápido, ‘Nelson Jobim deu uma
liminar concedendo um habeas corpus e liberdade provisória de um dia para outro
de 10 páginas, dizendo que Sérgio era bom, sempre colaborou com a justiça,
sempre compareceu. Por isso a prisão é injusta. Eu nunca vi isso na minha vida,
um ministro do Supremo Tribunal Federal elogiando o réu, em liminar’”. Desde
então continua aguardando seu julgamento em liberdade. No momento espera-se posicionamento
do STF sobre suposto cerceamento de defesa.
- processos ligados a
esquemas ilegais de arrecadação de recursos para campanhas eleitorais
organizados dentro da prefeitura de Santo André estão em curso, mas ninguém
ainda foi julgado.
Longo e importante caminho
foi percorrido, portanto, dado que as condenações, por júri popular, são
decisões que derrubam as versões de crime comum, ou crime urbano, tão
defendidas ao longo dos anos pelo PT e pelo DHPP. Apesar de inúmeros
obstáculos, chegou-se até aqui pelo empenho de muitos, mas não por que as
coisas funcionem bem normalmente e sim por tais esforços e sorte.
De 2002 a 2014, os mesmos
desejos de justiça
Em junho de 2013 muitas
reivindicações foram expressas nas ruas, tais como tarifa zero, educação “padrão
FIFA”, saúde “padrão FIFA”, menos impostos, menos corrupção, contra a PEC 37 e
muitas outras, com vitórias parciais importantes.
Sugere-se aqui uma
ampliação da agenda de junho, tomando-se como referência a resolução do
assassinato de Celso, de todos os crimes conexos a ele, isto é, aqueles ligados
à obtenção ilegal de fundos para campanhas eleitorais organizados em Santo
André e das oito mortes que puderam ter com ele alguma relação.
1º desejo: uma justiça
“padrão FIFA”
Que tal um sistema
judiciário que ao mesmo tempo preserve o direito de defesa, mas impeça todo
tipo de tática protelatória que faz com que, por exemplo, não se saiba quanto
tempo demorará para que Sérgio Gomes da Silva vá a júri popular, se é que irá?
Esperava-se que isto
ocorresse em março de 2013. Hoje aguarda-se posição do STF sobre alegação da
defesa de Sérgio de cerceamento de defesa, sem data para decisão. O juiz de
Itapecerica, Antonio Augusto Hristov, bem como a promotoria, há bom tempo
enviaram informações que indicam que não houve cerceamento nenhum.
Que o júri ocorra neste
ano. E que o sistema seja reformado para que ações protelatórias não existam
mais para ninguém, pois sabe-se o quanto isso o sobrecarrega e o encarece.
Sabe-se também que justiça que tarda não é justiça.
O mesmo sistema tem ainda
que julgar todos os processos de obtenção ilegal de recursos organizado na
prefeitura de Santo André. Quando isto ocorrerá?
Que tudo isto seja
encaminhado neste ano.
2º desejo: um sistema
penitenciário “padrão FIFA”
É responsabilidade desse
sistema preservar a vida de quem é preso. Peça-chave para o esclarecimento da
morte de Celso, Dionísio Aquino Severo fugiu de helicóptero de um presídio de
Guarulhos. Sua fuga “foi armada para ele comandar esse seqüestro, que planejou
de forma totalmente compartimentada” para que quem executasse o crime não
soubesse quem o havia planejado (Tuma Júnior, p.243).
Dionísio era líder do
Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade (CRBC), facção rival do PCC.
Depois de preso e levado à delegacia onde Tuma Júnior o ouviu por 20 horas, foi
encaminhado ao CDP1 do Belém. “Consultei o Dionísio. Ele deu o ok, disse que
era área dele, na presença de sua advogada. No dia seguinte ele estava no
parlatório, em conversa com uma das advogadas, a Maura Marques. No mesmo local
estava o José Edson, integrante da favela do Pantanal, não se sabe porquê.
E aconteceu uma coisa
surreal, escandalosa, absolutamente incomum. Nove portas do presídio estavam
abertas. Um grupo de presos atravessou as nove portas, pegou o Dionísio no
parlatório onde ele, tranquilamente, escrevia uma carta para a sua mulher, afim
de que sua advogada pudesse entregar, e o arrastaram. E o José Edson ali, vendo
tudo. A advogada ligou lá de dentro e disse: ‘Doutor, estão matando o menino. O
Dionísio levou mais de 40 facadas!!!’.
Agora me respondam: como,
em um presídio de segurança máxima, deixam nove portas abertas entre uma área e
outra? Para apurar as
circunstâncias da morte dele não fizeram quase nada” (Tuma Júnior, pp. 254 e
255).
Que os presídios sejam
estruturados de modo a preservar a vida de quem é recluso e que não sejam
dominados por facções criminosas, o que os torna mecanismos de sua reprodução
ampliada.
3º desejo: um sistema
policial “padrão FIFA”
Quanto à Polícia Federal
“dois delegados da PF estiveram no apartamento do Celso Daniel após o crime.
Fizeram uma busca, e consta que levaram seu computador, fato registrado pela TV
Globo, que os abordou na saída do prédio; até hoje ninguém sabe e ninguém viu
aquele hardware. Ambos os delegados, por mera coincidência, foram muito
prestigiados no governo Lula, que se instalou menos de um ano depois” (Tuma.
Júnior, p.268).
Quanto ao DHPP, diante de
sua vergonhosa investigação de tudo o que se relacionou com a morte de Celso,
resta responder por que razões isto se deu?
Que essa resposta seja
dada neste ano com um trabalho que retome o que de bom já foi feito nas
investigações e seja complementado de forma profissional, seja pela polícia
federal, seja pela estadual.
4º desejo: um sistema
legal “padrão FIFA”
Como aceitar que cidadãos
de um mesmo país sejam julgados em condições diferentes? A legislação
brasileira tem lacunas que permitem que os indivíduos sejam tratados de forma
desigual. “Quebra de sigilo indicou que o telefone celular de um deputado
estadual do PT estava nas imediações do local do encontro do cadáver de Celso
Daniel; Esse deputado tinha um cheque de Sombra depositado em sua conta
bancária” (Tuma Júnior, p. 273). Por que razão ele foi julgado em foro
especial?
Aliás, Sergio Gomes da
Silva, enquanto ficou preso, teve direito a cela especial, em função de possuir
diploma de curso superior, rematado absurdo.
Que a legislação seja
aperfeiçoada, nestes e em inúmeros outros aspectos para que todos sejam
tratados igualmente.
5º desejo: um sistema partidário
“padrão FIFA”
O sistema partidário
brasileiro está em crise. Partidos políticos são utilizados mais para projetos
de poder e para enriquecimento do que para ouvir os anseios da população,
discuti-los com toda a sociedade e canalizá-los às instituições para a
definição de rumos que possam levar o país ao desenvolvimento.
Costumam atuar de forma
intransparente. Para se viabilizarem eleitoralmente buscam esconder o que de
ilegal e imoral fazem. Cid Benjamin destaca que, “Poucos dias depois do
assassinato de Celso, e já tendo sido publicadas minhas primeiras matérias
sobre o caso, houve uma edição do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Fui
cobrir o evento pelo Jornal do Brasil. Tinha a expectativa de, lá, conseguir
mais informações de dirigentes do partido e de militantes do PT em Santo André
que estavam naquela cidade.
Não obtive grande coisa.
Um ministro todo-poderoso do governo Lula teve uma reunião com a delegação
petista do Grande ABC só para tratar do assunto. Afirmou ser muito grave o que
fora publicado no JB, porque com certeza tinha como fonte ‘gente de dentro do
PT’. E determinou que ninguém aceitasse falar comigo “(Benjamin, p. 259).
Que os partidos mudem sua
forma de atuar, se enraízem na sociedade, promovam o debate de questões que
estejam alicerçadas em seus interesses e sejam democráticos e transparentes.
6º desejo: um sistema de
comunicações “padrão FIFA”
Problemas do sistema de
comunicação no Brasil, pouco afeto a alargar os espaços de debate dos problemas
nacionais, se refletiram e continuam se refletindo na cobertura dos
acontecimentos que cercaram “o assassinato de Celso Daniel. Nos meses
seguintes, houve sete mortes [na verdade foram oito] de pessoas que, de uma
forma ou de outra, estiveram ligadas ao caso. Quando essa sucessão de mortes
aconteceu, eu não estava mais no JB. Embora elas tenham sido noticiadas de
forma isolada, os jornais, não lhes deram a importância devida, por motivos que
não consigo captar” (Benjamin, p. 260).
Que se reforme nosso
sistema de comunicações para que ele seja um local de debates, de educação e
cultura e não de manipulação de informações, de espetacularização das notícias
e de esvaziamento das mentes dos telespectadores para que fiquem atentos nos
momentos de propaganda, momento em que atingem maior eficácia.
7º desejo: um sistema de
financiamento de campanhas “padrão FIFA”
Partidos políticos que se
voltam fundamentalmente a viabilizar projetos de poder, desenraizados da
sociedade, em geral organizam esquemas ilegais de arrecadação de recursos a
partir do uso do aparato público e pouco fazem para mudar as leis que regulam a
propaganda eleitoral. Muitos os encaram como mal necessário. Mas então “os fins
justificam os meios?
Penso que não. Fins e
meios estão indissoluvelmente ligados. Determinados meios comprometem os fins
que se pretende atingir de forma irremediável. é inevitável uma constatação: se
o PT tivesse refletido de forma mais profunda e tirado as devidas lições do
caso Santo André – e antes dele, do caso CPEM – provavelmente não teria vivido
as agruras que viveu no episódio do mensalão, no qual, aliás, foram condenados
à prisão alguns dos mais importantes dirigentes que estava à frente do partido
em 2002, ano de morte de Celso Daniel” (Benjamin, p. 264).
Que a sociedade discuta
meios de financiar campanhas que as barateiem, que viabilizem o debate das
grandes questões (locais, regionais e nacionais), que evitem a formação de
“caixa dois”, a estruturação de “partidos de aluguel” e o enriquecimento
ilícito.
8º desejo: uma “burocracia
com autonomia inserida” “padrão FIFA”
O Estado deve deixar de
ser problema para se tornar solução: que seja profissionalizado, que garanta a
evolução de seus quadros em carreiras estáveis (não incondicionais), com
formação contínua (portanto capazes de inovar), que tenham capacidade para o
planejamento democrático, e, portanto, se insiram na sociedade sem serem por
ela corrompidos, que não façam da sociedade sua presa.
Romeu Tuma Junior, em
função de investigações que realizava sobre a máfia dos fiscais em São Paulo,
estava para indiciar o então secretário de governo da prefeitura em 2000. A
pressão para que isso não ocorresse o tirou da investigação: “fui exilado para
comandar a delegacia de Taboão da Serra” (Tuma Junior, p. 234). Talvez se
houvesse na estrutura policial o estatuto da inamovibilidade dos cargos, esse
tipo de pressão poderia não ter plena eficácia.
Outro problema da
administração pública brasileira é seu enorme número de cargos de confiança,
não necessariamente utilizados para fazer com que ela funcione de forma
eficiente e republicana, mas como objeto de manipulação para organizar maiorias
parlamentares e projetos de poder: “o que garantiu a impunidade, até hoje, das
cabeças que articularam e/ou se omitiram diante dos crimes que culminaram na
morte de Celso Daniel foi a eleição de Lula naquele ano, e sua permanência no
poder. Esse fato possibilitou a distribuição de espaços, cargos e recompensas
aos companheiros, e permitiu empregar, até o presente, todos os órfãos, atores,
‘viúvos’ e ‘viúvas’ do prefeito morto de Santo André. E com certeza contribuiu
decisivamente para que, burras abastecidas, as bocas permanecessem caladas e os
ânimos serenados” (Tuma Junior, p. 282).
Que entre na agenda a
construção de uma “burocracia estatal com autonomia inserida”.
9º desejo: um sistema
tributário “padrão FIFA”
Sistemas de educação,
saúde, transporte público, policial, prisional, de justiça etc, “padrão FIFA”,
exigem recursos, muito embora recursos apenas, sem as necessárias reformas, sem
alocação eficiente, podem significar desperdiçá-los. A esse respeito, valem os
seguintes relatos.
Após o lamentável trabalho
de investigação feito pelo DHPP, a cúpula da polícia designou a doutora
Elizabeth Sato para presidir o segundo inquérito. Segundo Tuma Júnior, a
delegacia por ela presidida não tinha estrutura para isso: “Com os recursos de
que dispunha, e certamente a pressão que sofria, a Dra. Sato cumpriu seu
trabalho e confirmou minha tese investigativa: Dionísio de Aquino Severo era
implicadíssimo no seqüestro e morte do prefeito Celso Daniel, que teve ação
compartimentada e levou para o túmulo o que poderia revelar.
Em outras palavras, ela
reconheceu que o Dionísio era o vínculo com o esquema do Sombra e de seus
comparsas. Só por isso já se vê como são inverídicas as notícias que afirmam
que a polícia refez a investigação e chegou ao mesmo resultado” (Tuma Júnior,
p. 279). No entanto encerrou sua incumbência sem encaminhar diligências
demandadas por seus próprios investigadores e também pelo Ministério Público.
Tuma Júnior também se refere
à insuficiência de recursos quando investigava a máfia dos fiscais: “… eu
estava sofrendo até ameaça de morte. Um dia fui ao gabinete falar com o
secretário da segurança pública, Marcos Vinícius Petreluzzi. Disse a ele:
‘Secretário, não temos estrutura, precisamos de gente. Pô, estamos investigando
a máfia dos fiscais, que já tentaram investigar uma vez e não conseguiram. É um
jogo muito pesado’. Ele respondeu: ‘Aqui não é o Muro das Lamentações’.
Veja: você é delegado de
polícia, dedicado, e chega no secretário de Segurança, informando que não há
estrutura, e ele te responde que ali não é o Muro das Lamentações!”(Tuma
Júnior, pp. 234 e 235).
Que se reforme o sistema
tributário de tal forma que simultaneamente contribua para reduzir
desigualdades, tributando mais os ricos e menos os pobres, ao contrário do que
ocorre atualmente e viabilize recursos para dotar o Estado de estrutura
adequada para prestar bons serviços à população.
10º desejo: a retomada da
investigação do assassinato de Celso “padrão FIFA”
Tuma Júnior elenca em seu
livro inúmeras providências investigativas não encaminhadas ao longo do tempo.
Sugere que isto pode ser feito pela Dra. Elizabeth Sato: “Hoje, já promovida à
Classe Especial, ela dirige o DHPP e tem uma estrutura fantástica para –agora
sim, e se deixarem- reinvestigar o caso” (Tuma Júnior, pp.279 e280).
Que se reiniciem então
novamente as investigações neste novo ano.
Bruno José Daniel Filho,
técnico da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap) e professor do
departamento de economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP).
(Estadão)