Ao menos seis autoridades
pertencem a famílias com antepassados que teriam se beneficiado da escravidão e
que seguem até hoje influentes em suas regiões, segundo levantamento da Agência
Pública. Este texto faz parte do Projeto Escravizadores, uma investigação
inédita da Agência Pública. O trabalho foi financiado pelo Pulitzer Center e
republicado pela DW.
Pelo menos seis
autoridades que constam no levantamento da Agência Pública sobre descendentes
de escravizadores na época dos períodos colonial e imperial brasileiros são
integrantes de clãs familiares que, ainda hoje, controlam e influenciam
politicamente suas regiões.
A governadora Raquel Lyra
(PSDB-PE) e os senadores Cid Gomes (PSB-CE), Ciro Nogueira (PP-PI), Efraim
Filho (União Brasil-PB), Tereza Cristina (PP-MT) e Veneziano Vital do Rêgo
(MDB-PB) vêm de famílias antigas com representantes na política local e
nacional.
A reportagem procurou os
políticos citados para esclarecer os achados de suas genealogias, assim como
fizemos com todas as autoridades citadas no Projeto Escravizadores, mas não
recebemos respostas até a publicação.
Nos baseamos em registros
em cartórios, jornais e pesquisas acadêmicas que mostram que alguns dos
antepassados de políticos de agora teriam sido proprietários de pessoas
escravizadas – o que colaborou para o aumento de seus patrimônios.
Estas são as suas
histórias.
Senador Veneziano Vital do
Rêgo (MDB-PB)
Um dos episódios mais
sombrios da história da escravidão brasileira, na visão do escritor Laurentino
Gomes, que escreveu a trilogia Escravidão, teve lugar em uma fazenda de
Remígio, cidade da região de Campina Grande, na Paraíba. Quem passa por ali, em
meio aos pacatos campos típicos do semiárido, provavelmente não desconfia que
as ruínas de mais de 200 anos hoje abertas a visitação abrigaram um sistema de
reprodução sistemática de pessoas escravizadas para venda – como se fossem
animais.
O dono da propriedade e
responsável pelo comércio de pessoas é um antepassado de uma das famílias mais
poderosas do estado, a Vital do Rêgo.
A história começa no
início do século 19, quando o português Francisco Jorge Torres aportou no
Brasil e deu início ao negócio de produção e venda de pessoas. Além da fazenda,
ele construiu um casarão no centro de Areia, cidade vizinha, onde teria mantido
uma senzala quase maior que a casa principal. Dos 19 quartos, 12 seriam de
escravizados.
As mulheres escravizadas
que moravam na propriedade eram obrigadas a dormir com alguns homens
escravizados que eram “reprodutores escolhidos a dedo”, segundo o historiador
Raimundo Melo em entrevista ao Bom Dia Paraíba. Elas ficavam grávidas e, quando
estavam prestes a parir, eram levadas para a fazenda, onde havia a chamada
“maternidade das negras”.
Lá, outras escravizadas
mais velhas ajudavam no parto e nos cuidados com o bebê. As mães podiam ficar
com os filhos apenas nos primeiros dias, depois eram levadas de volta para a
cidade, onde tornavam a engravidar. Os bebês eram cuidados “para que crescessem
fortes e depois fossem vendidos no comércio local”, continua Melo. Torres teria
comercializado pelo menos uma centena de escravizados.
“Pelas leis da escravidão,
cabia ao senhor o controle da reprodução física dos cativos, cujos filhos não
lhes pertenciam. A própria sexualidade, portanto, estava sob domínio senhorial.
Há notícias de recém-nascidos arrematados em leilões ou oferecidos em anúncios
de jornais. No Brasil há pouca documentação sobre reprodução de escravos para
venda, ao contrário dos Estados Unidos, onde essa prática é bem documentada”,
disse o escritor Laurentino Gomes em um vídeo gravado quando estava visitando a
fazenda em Remígio.
A pesquisadora Eleonora
Félix encontrou alguns registros de cartório de transações relacionadas aos
escravizados de Torres. Há a anotação da venda de um homem de 23 anos: “João,
solteiro, foi vendido por Francisco Jorge Torres pelo preço de 620S000”. Isso
daria aproximadamente R$ 91 mil em valores de hoje, de acordo com a conta
utilizada por Laurentino Gomes no livro 1822, que considerou que uma libra
esterlina valia cerca de 5 mil-réis.
O comerciante registrou
também que “dera carta de liberdade à sua escrava Maria Angola”, em 1855, em
“observância aos seus bons serviços”, mas com a condição de permanecer com ele
enquanto ele vivesse. Com isso, Maria Angola ficou livre apenas um ano e meio
depois, quando já tinha 50 anos de idade.
Em uma das salas do
casarão de Torres em Areia, que hoje é aberto ao público, há uma homenagem com
o nome das 18 pessoas escravizadas de Maria Franca Torres, filha do patriarca,
que constavam em seu inventário, registrado em 1871. Os escravizados tinham
entre 1 e 54 anos de idade. Seis eram crianças com menos de 10 anos.
O casarão exibe a
reprodução de bilhetes de rifa cujo prêmio era a compra da alforria de
escravizados. Pois Areia, apesar de abrigar o horror da “produção de escravos”,
também foi uma das primeiras cidades brasileiras a ter um forte movimento
abolicionista – tanto que libertou seus escravizados dias antes da promulgação
da Lei Áurea, de 1888.
Torres foi o primeiro do
ramo familiar que há séculos é um dos mais influentes da Paraíba. Ele é o
quinto avô do hoje senador Veneziano Vital do Rêgo. Veneziano, por sua vez, é
filho da ex-senadora Nilda Gondim e do ex-deputado Antônio Vital do Rêgo, irmão
do ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Vital do Rêgo Filho, neto do
ex-governador Pedro Gondim e sobrinho-neto do ex-governador, ex-deputado
federal e ex-senador Argemiro de Figueiredo.
Senador Cid Gomes (PSB-CE)
O senador Cid Gomes e seu
irmão Ciro Gomes, ex-ministro, ex-deputado e ex-presidenciável por quatro
vezes, têm um histórico antigo com a cidade de Sobral, no Ceará – que hoje é
presidida por outro irmão deles, Ivo Gomes.
Os três são filhos de José
Euclides Ferreira Gomes Júnior, que foi prefeito de Sobral, e bisnetos de José
Ferreira Gomes, o segundo prefeito do município. Ele, por sua vez, é irmão de
Vicente Ferreira Gomes, o primeiro prefeito de Sobral. José Euclides Ferreira
Gomes, o avô, foi deputado estadual.
A família também tem um
histórico que estaria ligado à posse de escravizados. Há um registro em
cartório do batizado de uma menininha que seria filha de uma escravizada de
Cesário Ferreira Gomes, trisavô de Cid e Ciro. Além disso, um anúncio de jornal
de 1854 fala sobre a fuga de um escravizado de Diogo Gomes Parente, outro
trisavô.
“Ao abaixo assignado fugió
de Sobral, um escravo mulato, de nome Delmiro, com os signaes seguintes: idade
de 22 annos, estatura baixa, cheio de corpo, cabello crespo arruivascado, olhos
grandes, sobrancelhas fechadas, nariz grosso e um tanto arrebitado, bocca
regular, faltão-lhe dois dentes na frente, pouca barba, rosto redondo, pouco
cabello no peito, pés grandes, tem uma pequena cicatriz no nariz, em um lado da
cabeça tem uma grande brecha que o cabelo cobre, e várias cicatrizes nas
costes”, diz o anúncio.
A governadora de
Pernambuco Raquel Lyra (PSDB-PE)
Raquel Lyra é filha de
João Lyra Neto, ex-governador de Pernambuco – ele foi vice de Eduardo Campos e
assumiu quando este se licenciou para concorrer à Presidência – e ex-prefeito
de Caruaru. O avô também foi prefeito de Caruaru. O tio Fernando Lyra foi
ministro da Justiça.
O poder da família é
antigo: o capitão Manoel Monteiro Paes da Rocha Lira, sexto avô de Raquel,
recebeu uma sesmaria (terra inexplorada para ser colonizada) da coroa
portuguesa em 1816, na região de Recife. Desde então, seus descendentes são
influentes na região.
José Soares da Silva Lyra,
trisavô de Raquel, é descrito como escravista no livro História da Lagoa dos
Gatos, do historiador João Pereira Callado. O autor cita que ele seria “dono de
uma porção dessa desgraçada gente”, em referência aos escravizados. “Era
daqueles bons senhores estimados. Depois da alforria, ficaram todos seus
cativos consigo, numa honrosa demonstração de bom caráter”, continua o texto.
Em outro trecho do livro,
o historiador diz que o quinto avô de Raquel, José Paes de Lira, foi “ajudado
ainda pelo braço de seus numerosos cativos” na venda de algodão produzido em
sua propriedade.
O pesquisador José Eduardo
da Silva levantou que Paes de Lira seria dono de 23 pessoas, de acordo com o
inventário deixado por ele em 1844 em Garanhuns. Os escravizados correspondiam
a 34% do seu patrimônio, ainda segundo o estudo.
A senadora e ex-ministra
da Agricultura Tereza Cristina (PP-MT)
A senadora e ex-ministra
da Agricultura Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias vem de uma longa linhagem
de políticos mato-grossenses. Um de seus avôs foi duas vezes senador e duas
vezes governador. Seu bisavô também foi governador duas vezes. E seu tataravô
foi Quintino Bocaiuva, primeiro ministro das Relações Exteriores e da
Agricultura da República.
Quintino Bocaiuva foi um
dos mais importantes abolicionistas da história do Brasil. Ele defendia a causa
em seu jornal, O Paiz, junto com Joaquim Nabuco, uma das principais vozes
contra a escravidão.
Já o quinto avô de Tereza
Cristina, Francisco Corrêa da Costa, foi descrito como “um médio proprietário
de escravos” em um estudo de Maria Amélia Alves Crivelente, mestre em história
pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Corrêa da Costa foi presidente
da província de Mato Grosso, deputado estadual e dono de engenho. Em outro
estudo, a mesma autora cita que seu filho Antonio assumiu o engenho do pai e
adquiriu outros, multiplicando o patrimônio da família, e também teria posse de
dezenas de escravos.
“Com perspicácia, audácia
e experiência na convivência com o pai, em 1855 seus bens somavam considerável
patrimônio em sesmarias onde cultivava milho, arroz e feijão, além do engenho
de açúcar e aguardente, tinha ainda 8.000 cabeças de gado, bestas, cavalos, 10
casas em Cuiabá e 194 escravos, sendo 81 deles africanos”, cita a pesquisadora.
Senador Ciro Nogueira
(PP-PI)
O avô paterno do senador
Ciro Nogueira (PP-PI) foi prefeito de Pedro 2º, o pai foi deputado federal duas
vezes e um tio também foi deputado federal. Nogueira foi casado com a
ex-deputada federal Iracema Portella (PP-PI). A história deles está
intrinsecamente ligada à política do Piauí há mais de 300 anos.
Quinto avô de Nogueira, o
tenente-coronel Antonio Sousa Mendes embarcou em um navio saindo do Rio de
Janeiro em 7 de maio de 1853 junto com dois escravos, Antonio e Raimundo, de
acordo com registro no jornal O Constitucional. Sousa Mendes participou como
militar da guerra da independência e da repressão à Balaiada, revolta da
população pobre do Maranhão.
Um dos filhos de Sousa
Mendes foi Simplício Mendes, que foi presidente da província do Piauí quatro
vezes e nomeou a cidade de mesmo nome. Outro filho foi ministro do Supremo
Tribunal Federal (STF). O filho de Simplício, Álvaro de Assis Osório Mendes, foi
senador e governador do Piauí.
A família é descendente de
Valério Correia Rodrigues, português que foi um dos primeiros povoadores do
Piauí, em meados do século 18. Rodrigues colecionou dezenas de fazendas e teria
sido dono de vários escravos, como constataram pesquisadores da Associação dos
Descendentes de Valério Coelho, que montaram uma árvore genealógica desde o
patriarca.
“Foram encontrados vários
assentos de batismos de familiares e escravos de Valério Coelho”, diz o site
que compila a pesquisa genealógica do patriarca. De acordo com os registros,
Coelho batizava os filhos de suas escravizadas. “Aos dezasete de dezembro de
mil e sete centos e setenta e quatro na fazenda do Paulista Baptizei solemne
mente e pus os santos oleos a Ignacia filha de digo Baptizei e et cetra a Luiza
filha de Quiteria preta solteira de Nascam Angolla Escrava de Vallerio Coelho
Rodrigues morador na dita fazenda”, diz um deles.
Ciro Nogueira não aparece
como descendente direto de Valério Coelho nos registros oficiais porque tudo
indica que seu bisavô, Pedro da Silva Mendes, não foi um filho legítimo do
trisavô Álvaro de Assis Osório Mendes. O seu registro de falecimento,
inclusive, diz que sua mãe era Luiza de França Vilarinho, “doméstica”.
O senador fez parte da
Frente Parlamentar Mista pela Erradicação do Trabalho Escravo em 2010. Três
anos antes, ele foi um dos parlamentares que votaram para aprovar uma regra que
dificultava o combate ao trabalho escravo – ela estipulava que auditores
fiscais do trabalho não poderiam apontar vínculo empregatício entre patrões e
funcionários quando constatassem irregularidades.
Senador Efraim Filho
(União Brasil-PB)
Filho do ex-senador
paraibano Efraim Morais e neto dos ex-deputados estaduais João Feitosa e Inácio
Bento de Morais, o senador Efraim Filho já reconheceu que “ter sobrenome
conhecido na política ajuda a abrir portas”.
Seu tataravô, Manoel de
Araújo Pereira 2º, aparece em uma relação de senhores de escravos em Santa
Luzia do Sabugy, antigo nome de Santa Luzia, na Paraíba, no período de 1858 a
1888, de acordo com a dissertação de Joselito Eulâmpio da Nóbrega, “Comunidade
Talhado – um grupo étnico de remanescência quilombola: um identidade construída
de fora?”, sobre a comunidade com remanescentes de quilombolas dessa cidade. O
registro não cita o número de escravizados que ele teria tido.
Fonte; Istoé dinheiro